quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Pintei um quadro

Finalmente, ao fim de tantos anos de tentativas, e ideias e espera. Quanto mais nos queremos afastar de uma inclinação inicial, mais ela nos persegue, e por vezes acaba mesmo por prevalecer...
É óptima a sensação de produzir algo, de lhe poder tocar. Fazer com as mãos.


sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Inner Life

Tenho um lado obsessivo-compulsivo: não gosto de ver cabelos pendurados na roupa das pessoas, mesmo daquelas que não conheço, e tenho que me refrear para não os tirar. Não gosto de ver vincos ou dobras desnecessárias em lençóis, colchas, toalhas, roupa. Arrumo os livros nas prateleiras por ordem alfabética de autoria e por ordem de aquisição, no caso de pertencerem a um/a mesmo/a autor/a; nos "recreativos", escrevo, na primeira página, o mês, o ano e o local da compra; nos académicos/científicos, assino e escrevo o ano da compra. Ofereço muita resistência a mudar o meu percurso geográfico quotidiano: só ao fim de muita persuasão, consigo realmente "encaixar" que, se fôr por outro lado, é mais rápido ou encontro menos obstáculos.

Irrita-me que as pessoas digam "obrigados" ou "gostava de chamar a atenção que".

Não gosto que me toquem involuntariamente, na rua. Nem que venham a "marcar passo" atrás de mim.

Gosto de ficar em silêncio. Não gosto de usar a televisão como "luz de presença". Gosto de ter tudo desligado e ficar a ouvir somente a minha voz interior.

Não gosto de pés. Não me importo de olhar para eles, mas não gosto de lhes tocar; nem nos meus. A menos que seja estritamente necessário. Não gosto das unhas dos pés; acho-as feias e absurdas.

Gosto de cabelo. Adoro que me mexam no cabelo, adoro cabelos em que apetece mexer. Não percebo como é que há gente que sai à rua como se tivesse lavado a cabeça com óleo Fula.

Adoro o cheiro dos lençóis lavados e de enterrar o nariz na fronha acabada de tirar da gaveta. Gosto de roupa de cama branca, toda branca. Adoro a sensação de me deitar numa cama fresca, mesmo quando está frio.

Não consigo ultrapassar o facto de passar por uma cara conhecida, e não me conseguir lembrar quem é. Sou capaz de ficar a matutar nisso dias inteiros.

Sou incapaz de ler uma matrícula e não pensar logo numa palavra passível de nascer daquelas duas letras.

Gosto de ombros. Dão vontade de morder.

Não gosto de aranhas e insectos na generalidade, excepto joaninhas, mesmo que digam que são escaravelhos às pintas. Gosto de gatos e cães. Entro em pânico se vejo um cão "potencialmente perigoso" sem trela, na rua; começo a hiperventilar e fico estática.

Não gosto de crianças a fazer birra. Não gosto de gente a falar alto.
Gosto do cheiro a sabonete. Daquele básico, que cheira só mesmo a lavado. É preferível ao encharcamento em perfume, que me deixa à beira da náusea.

sábado, 6 de outubro de 2007

Sentença: Movimento Perpétuo

Em alguns momentos, o meu maior desejo era que a minha cabeça tivesse um botão de desligar. Aliás, já nem peço tanto: um stand-by já servia. Às vezes, fico tão cansada que me sinto como se o meu cérebro fosse entrar em ebulição, ou se a cabeça fosse estourar de vez, e saltar dos ombros, projectada para o Espaço...
Por vezes, gostava de poder pintar a cabeça de branco; por dentro. Como uma sala de um manicómio, daqueles que vemos nos filmes, com as paredes almofadadas, e nada lá dentro. Só branco e silêncio. Vazio. Sossego.
Mas os pensamentos, na minha cabeça, são como comboios. Intermináveis e barulhentos. Começam com uma coisa mínima, "Olha, que giro, uma sombra na parede", e de repente viajei dez anos para trás, no tempo, numa série contínua de carruagens-ideias. Uma lagarta infinita de memórias, e experiências, e ideias, e perguntas. Normalmente, dois minutos em silêncio são sucedidos por uma pergunta estapafúrdia. Porque, naqueles dois minutos, percorri todos os recantos da minha memória de curto e longo prazo e cheguei a um nó que me trouxe de volta à realidade: uma pergunta. Como é que os aviões se mantêm no ar depois de descolar? Porque é ficamos tontos/as depois de um sopro prolongado? O que é que acontece às coisas dentro do microondas?
Às vezes, simplesmente, não consigo parar de pensar. Estou cansada, dói-me a cabeça, tenho sono, quero concentrar-me em alguma coisa ou simplesmente não pensar em nada, e não consigo. Porque há uma música, uma música qualquer (e quanto mais rebuscada melhor), pode até nem ser uma música, mas simplesmente uma frase que alguém disse com uma certa "musicalidade", e fica a martelar horas infindas na minha cabeça. Sem parar. E quanto mais eu penso que preciso de tirar esta ideia da minha cabeça, mais alto ela toca, e com mais nuances, às vezes mais agudo, outras vezes mais grave, mais rápido ou mais lento. E eu a querer fugir, e a música sempre a perseguir-me, e atrás dela mais ideias, mais lembranças, "preciso de fazer isto", "gostava de fazer aquilo", "esqueci-me de fazer não-sei-quê".
Que horror... Preciso que alguém me salve de mim própria...! Acho que vou acabar louca...

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

"Five Years" (Bowie, 1972)

Cinco anos. Uma mão cheia de anos. Uma mão cheia de risos, projectos, sonhos, lágrimas, silêncios. Uma mão cheia de vida(s). Uma vida cheia de mim.
Completam-se cinco anos, completa-se uma fase, ninguém mo disse, mas assim parece ser.
Cinco anos. Quando encetei este capítulo da minha vida, faltava menos de um mês para fazer 18 anos; passam amanhã dois meses desde que fiz 23.
É quase ridículo dizer que tanta coisa se passou desde há cinco anos para cá, porque na realidade me sinto como se, neste estretanto, tivesse percorrido o Mundo inteiro mil vezes, perdendo-me e achando-me em cada momento. É como se tivesse morrido e voltado a nascer a cada dia.
Conheci pela primeira vez a dor da verdadeira saudade. Aquela saudade que nunca morre, que nos humedece sempre os olhos, sempre, que nos traz um nó à garganta. Aquela saudade que nunca mais poderemos saciar. Perdi o meu avô. A presença dele deixou de preencher fisicamente os meus dias, embora esta dor de não o ter nunca morra. Por vezes adormece, por vezes é quase como se não estivesse lá, mas por vezes é tão forte que nem consigo respirar. Penso muito nele, muitas vezes, em muitas situações. Não só quando penso no meu futuro e imagino todos aqueles acontecimentos na minha vida que ele já não pôde nem vai poder testemunhar: se um dia me casar, ele não vai estar lá. No dia em que apresentei a minha primeira comunicação, na Faculdade, ele não esteve lá sentado na plateia ao lado da minha avó. Se um dia tiver um filho, não vou poder pôr-lhe no colo o bisneto que terá o seu nome. Não pude mostrar-lhe as fotografias do dia em que comemorei o final do meu curso. Ele nunca visitou a minha casa. Também sinto a falta dele no dia-a-dia, nos fins de semana em que vou a casa dos meus pais, quando percorro os álbuns de fotografias, quando sinto na rua o cheiro do after-shave dele... Enfim, sempre. É uma dor que nunca acaba, simplesmente aprendemos a viver com ela, uns dias melhor, outros dias com muita dificuldade. Doem os beijos e os abraços que não lhe dei, as histórias que não o ouvi contar, a falta do assobio dele, a voz dele a dizer aquelas coisas de todos os dias, e dói o medo de me esquecer dessas coisas, como sei que um dia hão-de esquecer todas essas memórias de mim.
Perdi também a minha avó paterna e a minha tia, irmã mais nova do meu pai, a primeira devido a problemas de saúde associados à idade, e a segunda num acidente de viação. E senti bem fundo a angústia do fim, de um dia poder ser a última "testemunha" de tantas vidas que tanta gente ainda por nascer já não irá conhecer, de eu própria ser um dia pouco mais que uma vaga memória ou uma fotografia amarelecida no fundo de uma gaveta. Daqui a cem anos, este sítio onde estou sentada neste momento, a escrever estas palavras, poderá não ser senão ruínas ou pó. E ninguém saberá, nessa altura, que esteve aqui alguém a pôr memórias em palavras e a pensar no seu próprio fim. O que fica de nós, depois de morrermos?
Por outro lado, e porque nem só de perdas foi esta fase feita, este período tem o seu início precisamente no momento em que iniciei a relação pessoa com quem hoje partilho a vida. Passaram cinco anos no dia 22 de Julho. E têm sido anos de uma aprendizagem permanente e de uma partilha incessante. Sou hoje uma pessoa muito diferente daquela que era há cinco anos atrás, e se essa mudança me tem sido favorável, isso deve-se à amizade, ao companheirismo e ao amor que me têm sido dedicados. Ao fim deste tempo todo, e de todos os obstáculos que tivemos que ir ultrapassando, continua a ser a pessoa que melhor me conhece, mais me compreende e mais me critica, mas sempre de forma construtiva. É um companheiro a todos os níveis (excepto como par de dança, mas tem de haver sempre algum handicap...) e é das pessoas mais interessantes que alguma vez conheci: o assunto de conversa nunca se esgota, e não é raro fazer-me rir até às lágrimas. Completaram-se no dia 20 de Setembro quatro anos de partilha quotidiana. Construímos uma casa; não com tijolos e cimento, antes com hábitos, velhos e novos, gostos (in)comuns, muitas conversas, muitos silêncios, muitas gargalhadas. A Luna!
Ninguém nos explica como vai ser partilhar a vida e a casa com alguém, principalmente quando um laço afectivo nos une a esse alguém. Desejam-nos felicidades e boa sorte, mas não nos dizem como vai ser difícil. Para mim, que tinha saído de uma casa onde, basicamente, não fazia a ponta de um corno, ver-me de repente a braços com uma casa que era minha, sob a minha exclusiva responsabilidade, foi, em alguns momentos, um choque. Também ninguém nos explica como, por vezes, e apesar de poder ser difícil viver connosco mesmos/as, viver com outra pessoa é bastante mais complicado. E quando estamos a aprender a fazer as duas coisas, ao mesmo tempo, mais difícil ainda... Nunca deixa de ser um desafio, parece-me. Se deixar, é porque morreu. Mas acaba por dar mais gozo do que dores de cabeça. E, se assim for, é porque vale a pena. No meu caso, valeu, tem valido, continua a valer. É uma descoberta constante, de mim própria e da outra pessoa, de todos aqueles Outros que somos interiormente. Como diz o Luís Fernando Veríssimo na crónica "Do Lado de Lá" desta semana, na revista "Actual" do jornal "Expresso":
«Dois nunca são só dois, são dezassete de cada lado. E quando você pensa que conhece todos, aparece o décimo oitavo. (...) Tenho outros por dentro que nem eu entendo, minha teoria é que a gente nasce com várias possibilidades e quando uma predomina as outras ficam lá dentro, como alternativas descartadas (...). Viver juntos é ir descobrindo o que cada um tem por dentro, os dezassete outros de cada um, e aprendendo a viver com eles. A gente se adapta. Um dos meus dezassete pode não combinar com um dos dezassete dela, então a gente cuida para eles nunca se encontrarem»
Amar dá trabalho! Viver dá trabalho. Mas, ao fim de cinco anos, continua a valer (muito) a pena.