quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

"Eu?! Ai, que horror, nem pensar!"

John Donne, poeta inglês do século XVI, é o autor de um poema intitulado "No man is an island" (frase amplamente citada), e que reza assim:

No man is an island entire of itself; every man
is a piece of the continent, a part of the main;

(...) any man's death diminishes me,
because I am involved in mankind.
And therefore never send to know for whom
the bell tolls; it tolls for thee.

O indivíduo é incompleto, porque é parte de um todo indivisível. Por isso, nunca ninguém está verdadeiramente só, nem na morte. Pego hoje nesta ideia porque quero pensar sobre o Outro; sobre a(s) forma(s) como a relação com "aquele/a que não sou eu" me faz aquilo que eu sou.
Ao correr da vida, vamos, através das nossas vivências, construindo a nossa identidade: os nossos gostos, os nossos valores, os nossos objectivos. Vamos estabelecendo um conjunto de "traços de carácter", mais ou menos (in)flexíveis que nos permitem delinear os limites de nós mesmos/as. Quando dizemos "eu sou assim", estamos, na verdade, a dizer "eu não sou assado", ou seja, "eu não sou aquela(s) pessoa(s), sou um indivíduo porque sou diferente porque sou um indivíduo".
É um processo complexo de descrever, e ainda mais complexo de experienciar, mas, com mais ou menos atribulações, (quase) todos/as chegamos ao final da adolescência pensando saber quem somos. Quando o atingir dessa meta coincide com o encetar de um relacionamento mais significativo pode emergir um sentimento algo ambíguo em relação àquele Outro. Por um lado, há uma necessidade de comprometimento emocional, mas por outro lado há alguma reticência em simplesmente dizer: «Ok, tive muito trabalho a descobrir quem sou e não sei se já cheguei ao fim dessa tarefa, mas estou tão empenhado/a nesta relação que estou disposto/a a pôr isso de lado e descobrir um novo "eu"».
E o Outro obriga-nos a isso, mesmo inconscientemente, da mesma forma que nós também obrigamos o Outro a desconstruir-se enquanto indivíduo. Há um impulso para a mudança, porque a estagnação é a morte.
Quando somos crianças, temos a certeza absoluta de que não gostamos (e não compreendemos como é possível gostar) de certas coisas, nomeadamente certos alimentos ou certos pratos. Há medida que vamos crescendo, o nosso paladar vai-se modificando (e a nossa receptividade à novidade também) e descobrimos que apreciamos certos sabores que, antes, nos davam náuseas. Na relação com o Outro, acontece o mesmo. Temos a certeza absoluta daquilo que somos, gostamos, queremos e em que cremos, até que um dia damos por nós a fazer/dizer/desejar coisas que, antes, nos pareciam absolutamente inimagináveis. E, claro, não me estou apenas a referir a comportamentos patológicos; estou a falar de todos/as nós, nos nossos quotidianos "normais" de pessoas "normais".
Penso que, na verdade, aquilo que de mais importante o Outro nos ensina é que somos muitas coisas, muitas pessoas diferentes dentro da mesma, e ensina-nos a ter flexibilidade e a saber quando devemos ser uma ou outra. Aquilo que somos não está escrito nas nossas testas, nem trazemos uma tabuleta ao pescoço a informar o que queremos, do que gostamos, em que acreditamos. É essa "multiplicidade" que nos permite, penso eu, manter alguma sanidade mental: quando a nossa vida profissional nos deixa à beira da loucura, por exemplo, sabemos que noutro contexto, noutro espaço-tempo, teremos liberdade para ser. Para sermos o que quisermos, quem quisermos, por quanto tempo quisermos. Por isso penso que somos mais livres quando nos entregamos.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Nouveau Vice

Carla Bruni - "Le Toi du Moi"

Je suis ton pile
Tu es mes faces
Toi mon nombril
Et moi ta glace
Tu es l'envie et moi le geste
Toi le citron et moi le zeste
Je suis le thé, tu es la tasse
Toi la guitare et moi la basse

Je suis la pluie et tu es mes gouttes
Tu es le oui et moi le doute
T'es le bouquet je suis les fleurs
Tu es l'aorte et moi le coeur
Toi t'es l'instant moi le bonheur
Tu es le verre je suis le vin
Toi tu es l'herbe et moi le joint
Tu es le vent j'suis la rafale
Toi la raquette et moi la balle
T'es le jouet et moi l'enfant
T'es le vieillard et moi le temps
Je suis l'iris tu es la pupille
Je suis l'épice toi la papille
Toi l'eau qui vient et moi la bouche
Toi l'aube et moi le ciel qui s'couche
T'es le vicaire et moi l'ivresse
T'es le mensonge moi la paresse
T'es le guépard moi la vitesse
Tu es la main moi la caresse
Je suis l'enfer de ta pécheresse
Tu es le ciel moi la terre, hum
Je suis l'oreille de ta musique
Je suis le soleil de tes tropiques
Je suis le tabac de ta pipe
T'es le plaisir je suis la foudre
Tu es la gamme et moi la note
Tu es la flamme moi l'allumette
T'es la chaleur j'suis la paresse
T'es la torpeur et moi la sieste
T'es la fraîcheur et moi l'averse
Tu es les fesses je suis la chaise
Tu es bémol et moi j'suis dièse

T'es le Laurel de mon Hardy
T'es le plaisir de mon soupir
T'es la moustache de mon Trotski
T'es tous les éclats de mon rire
Tu es le chant de ma sirène
Tu es le sang et moi la veine
T'es le jamais de mon toujours
T'es mon amour t'es mon amour

Je suis ton pile
Toi mon face
Toi mon nombril
Et moi ta glace
Tu es l'envie et moi le geste
T'es le citron et moi le zeste
Je suis le thé, tu es la tasse
Toi la putain et moi la passe
Tu es la tombe et moi l'épitaphe
Et toi le texte, moi le paragraphe
Tu es le lapsus et moi la gaffe
Toi l'élégance et moi la grâce
Tu es l'effet et moi la cause
Toi le divan moi la névrose
Toi l'épine moi la rose
Tu es la tristesse moi le poète
Tu es la belle et moi la bête
Tu es le corps et moi la tête
Tu es le corps. hummm !
T'es le sérieux moi l'insouciance
Toi le flic moi la balance
Toi le gibier moi la potence
Toi l'ennui et moi la transe
Toi le très peu moi le beaucoup
Moi le sage et toi le fou
Tu es l'éclair et moi la poudre
Toi la paille et moi la poutre
Tu es le surmoi de mon ça
C'est toi Charybde et moi Scylla
Tu es la mère et moi le doute
Tu es le néant et moi le tout
Tu es le chant de ma sirène
Toi tu es le sang et moi la veine
T'es le jamais de mon toujours


segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

A minha vida num postal ilustrado

A primeira vez que visitei o Porto, devia ter uns 11 anos. Detestei. Naquela altura, os meus pais tinham o hábito de fazer viagens do estilo "vá para fora cá dentro", e confesso que devo conhecer mais de Portugal do que alguma vez imaginei ser possível (ou desejei). Só para dar uma ideia, houve um fim-de-semana em que a viagem teve como destino Freixo de Espada à Cinta, simplesmente porque o meu pai achou piada ao nome da terra (com todo o respeito pelos/as Freixo-de-espada-à-cintenses, a piada fica-se mesmo pelo nome...). Naquela altura, por todas as razões e mais algumas, a última coisa que queria na vida era passar um fim-de-semana enfiada no carro, com os meus pais e a minha irmã, rumo ao Sítio onde o Diabo Perdeu as Botas, onde, normalmente, só se chegava por meio de alguma estrada serrana serpenteante.
Não sei bem por quê, se seria do dia cinzento, de haver pouca gente na rua, ou de termos ido parar a um sítio onde um esgoto enorme abria directamente para o areal da praia, mas fiquei com péssima impressão do Porto, e passou a ser um dos meus ódios de estimação. Convenhamos que eu, como jovem ribatejana da década de 90 que se prezasse, vivia (ou sonhava viver) a utopia alfacinha. Lisboa era aquela cidade onde íamos fazer coisas importantes, "ir a Lisboa" era sempre um acontecimento e poder dizer de uma peça de roupa "comprei em Lisboa" era como dizer "comprei em Milão". Era para lá que previa ir estudar, assim que pudesse pôr Santarém "para trás das costas", como se costuma dizer. E assim foi, 18 anos acabados de fazer, lá fui eu habitar um apartamento na Avenida do Brasil (para quem não sabe, é a rua do LNEC e, mais importante, do Hospital Júlio de Matos).
Quis o destino que a minha utopia alfacinha durasse pouco, e durante esse ano "abroad" fui amadurecendo a ideia de me mudar para o Porto, embora muito a contra-gosto. A razão para me mudar era boa (a melhor..!), mas a reticência em ir viver para uma cidade que me tinha desgostado tanto era muita...
Em Março, passam quatro anos e meio desde que a Invicta se tornou a minha cidade. Encho a boca para dizer que vivo no Porto. Sou capaz de maldizer o Inverno nesta terra, esta chuva crónica, este cinzento perpétuo, esta humidade que se agarra às paredes, ao cabelo, à roupa. Mas adoro o Porto. O Verão aqui é fantástico; quando saio do comboio em Santarém, em Junho, já não consigo respirar... Nunca vou deixar de ser scalabitana, e Santarém há-de sempre ser a minha terra, mas o Porto foi a cidade que eu escolhi para "construir" a minha vida, e quanto mais tempo passa, mais certa estou da minha decisão.
Para aqueles e aquelas que, morando no Porto, não o vivem; para aqueles e aquelas que, não morando no Porto, têm dele a imagem dos postais ilustrados; ou, finalmente, para aqueles e aquelas que, não conhecendo o Porto por dentro, têm dele apenas a imagem do granito enegrecido pela chuva, aqui fica a cidade onde vivo, em fatias de luz e côr, num fim de tarde de Inverno...











quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

A minha primeira resolução de Ano Novo é...

...não fazer resoluções. Não percebo todo o "burburinho" à volta deste assunto; aparentemente até é um tema susceptível de inspirar peças jornalísticas. De há uns anos para cá, parece que passou a ser moda entrevistar gente na rua, em vésperas de passagem de ano, de forma a auscultar quais os seus projectos e promessas a cumprir durante o ano que se avizinha.
Este ano ouvi coisas especialmente interessantes (além das habituais "fazer dieta" ou "inscrever-me no ginásio"), como uma senhora que dizia que uma das suas resoluções de Ano Novo era encontrar um namorado. Eu acho bem, nada contra. É tão válida como resolver ganhar o Euromilhões ou instaurar a paz no Médio Oriente. Sou completamente apologista da auto-determinação e do poder da vontade individual, mas sejamos realistas: há coisas que não vale a pena resolvermo-nos a fazer, porque estão fora da nossa área de influência.

Acho que fazer listas de tarefas a cumprir é meio caminho andado para transgredir essas obrigações. Uma coisa é ter uma agenda e apontar algumas datas incontornáveis (consultas ou exames médicos, datas de exames ou entregas de trabalhos, datas de eventos onde vamos participar...). Outra coisa completamente diferente é definir aquilo que temos de fazer durante um ano inteiro, sem consideração pelos timings certos de cada projecto, cada situação, cada pessoa que vai cruzar o nosso caminho ao longo daqueles 365 ou 366 dias.

E é certinho que vamos chegar ao fim desse ano e sentirmo-nos um fracasso, porque os projectos, as situações e as pessoas não esperaram por nós, nem pela nossa lista, e provavelmente deixámos passar excelentes oportunidades, por estarmos apenas preocupados/as com aqueles objectivos que definimos no início de um ano sobre o qual ainda não sabíamos nada.

Há que ser flexível, em relação a nós mesmos/as, aos/às outros/as e à vida. Hoje estamos aqui; e amanhã? Alguém sabe? Alguém tem absoluta certeza de onde/a fazer o quê/com quem vai estar amanhã? E depois? E depois? E se a vida resolver passar-nos a perna?