sexta-feira, 17 de novembro de 2006

Conquistas da Vida Adulta, ou a Descoberta do Mérito Próprio

Tenho 22 anos e ainda não saí "debaixo da asa" dos meus pais. Está certo que já não moro em casa deles desde Setembro de 2002, e que, neste momento, vivo a cerca de 300 km de distância da casa-mãe, mas, tecnicamente (digamos, no que ao aspecto financeiro da questão diz respeito), eles sustentam-me. É verdade, assumo: tenho 22 anos e vivo à custa dos meus pais. Com a minha idade, a minha mãe estava a iniciar a sua vida profissional (concluído o curso superior) e o meu pai, enfim, tinha deixado de estudar no 6.º ano, já há muito que se sustentava a ele próprio. Namoravam e casariam daí a um ano. Com a minha idade, a minha avó já era casada e mãe da minha mãe. E eu aqui estou. Por vezes sinto-me um pouco condenada à condição perpétua de estudante, e agora que estou quase a acabar a Licenciatura (no início do quinto e último ano de percurso), imagino cada vez mais que nunca vou poder realmente deixar os bancos da Faculdade, seja por causa da progressiva desvalorização dos graus académicos (é quase como se estivéssemos sempre a correr dois passos atrás das decisões políticas...), seja porque me sinto cada vez mais a cumprir o meu destino, e sinto que é esta a minha casa. Quem dera.
Por vezes, esta condição angustia-me. O corpo pede-me mais, a cabeça pede-me mais, a vida pede-me mais. Daqui a 20 anos, possivelmente, terei saudades destes dias-como-tardes-preguiçosas-de-Verão, mas hoje vivo na falta do que (ainda) não tenho. E no sobressalto de não ter tempo de o ter. Principalmente desde que o meu avô morreu, esta coisa do tempo (ou da falta dele) ocupa o meu pensamento desde que me levanto até que me deito, e dou por mim, muitas vezes, a pensar "Que horror, nunca vou ter tempo para fazer isto ou aquilo". E tenho 22 anos.
Pesem embora as aflições financeiras e crono-biológicas, a vida adulta trouxe-me outras descobertas menos penosas, como seja o mérito próprio. Quando era criança, e como muitas crianças da minha idade (principalmente aquelas que teriam, pela primeira vez na história das suas famílias, verdadeiras oportunidades de sucesso académico), a minha vida era mais aquilo que se passava na escola do que fora dela, e os meus méritos eram esses, aqueles que vinham sob a forma de "bons" e "muito bons" e muitos certos redondinhos desenhados a vermelho no caderno diário. Mas as minhas conquistas eram mais importantes para aqueles/as que as viviam comigo, principalmente os meus pais, e até eles as viviam de forma distinta entre si: para a minha mãe, era sempre bom, mesmo quando era mau; para o meu pai, era sempre mau, mesmo quando era bom. É a diferença entre viver para os/as filhos/as ou viver através dos/as filhos/as, entre sabermos que temos algo para lhes dar ou só querermos que eles/as sejam melhores do que nós fomos.
Entretanto, e alguns anos depois, a verdade é que continuo na escola, e os meus méritos continuam a ser maioritariamente académicos, mas já de outra natureza, e nesse aspecto penso que tive sorte. Estou num curso que me ensinou a "des-pensar": entrei para lá a pensar que sabia tudo, e agora, saio de lá a saber de facto algumas coisas e a ter a certeza de que a maior parte do que "sabia" quando para lá entrei...era basicamente lixo intelectual e ideias feitas. Se este não é o mérito do Ensino Superior, o de ensinar os/as seus/suas alunos/as a nunca deixarem de pensar, mesmo sobre aquilo que assumem como certo, não sei qual será...
E hoje, aquilo que tenho de que me orgulho é meu, fui eu que conquistei, para mim. Onde circulo, não sou "filha de cicrano/a" ou "conhecida de beltrano/a", recolho os frutos do meu próprio trabalho, e através dele construo os meus sucessos e insucessos, presentes e futuros. Já não quero ser boa naquilo que faço para fazer alguém feliz, é a mim que faço sorrir ou chorar, é a mim que ultrapasso ou desiludo, e gosto disso. Não quero ser melhor que ninguém, a minha expectativa é apenas a de, todas as noites, deitar a cabeça na almofada e pensar "Dei o meu melhor". É a minha luta, e é por mim.

quarta-feira, 8 de novembro de 2006

Raparigas Alpha (Focus 367/2006)


Num artigo sem assinatura, antecedido pelo artigo comentado anteriormente, fala-se de "Raparigas Alpha. As novas gerações de mulheres deixaram de lado as questões do feminismo; pelo menos como o conhecíamos". Começa por se dizer: "As mulheres jovens de hoje não vêem os homens como inimigos, possuem sucesso no campo profissional e não negam gostar de ter uma vida familiar equilibrada. Assim sendo, talvez tenhamos de concluir que o movimento feminista, tal como foi desenhado pelas militantes da década de 60, está um tanto ou quanto moribundo". A partir da leitura deste pequeno excerto, ficamos a saber pelo menos duas coisas: a primeira é que "o movimento feminista, tal como foi desenhado pelas militantes da década de 60" tinha inerentes as ideias de que os homens são inimigos das mulheres, de que as mulheres não possuem/não podem possuir sucesso no campo profissional e de que não é aceitável que uma mulher afirme que gosta de ter uma vida familiar equilibrada; a segunda é que o feminismo só tem/teve militantes do sexo feminino. O erro deste artigo, como aliás do anterior, é a sua tendência para o unitarismo: "as mulheres antigamente eram todas assim", "as mulheres hoje em dia são todas assado". Ao contrário do que os/as autores/as e editores/as desta revista possam pensar, há mais a dizer sobre o "movimento feminista" do que meia dúzia de frases feitas, do género "queimaram sutiãs". O "movimento feminista" não é uno nem único, existiram e existem vários movimentos feministas ao longo da história da humanidade, organizando-se e actuando em diferentes frentes de luta e em diferentes formas, tendo como consequência uma diversidade de vertentes que variaram ao longo da história e do contexto social: por meio da igualdade, da diferença e da separação, há porém, no feminismo, um compromisso comum, o de pôr fim à opressão e subordinação das mulheres e à estrutura patriarcal presente em vários níveis da sociedade. As diferenças situam-se na forma como pensam sobre as mulheres, no adversário, quais os focos de luta, bem como as metas que querem alcançar; as divergências vão da análise das raízes do patriarcalismo, à possibilidade de combater, de reformar o estado patriarcal e/ou capitalismo patriarcal, à heterossexualidade patriarcal ou ainda à dominação cultural.
Podemos, nomeadamente, salientar o movimento feminista liberal/socialista (defende as mulheres como seres humanos e sociais e toma como adversário o Estado patriarcal e/ou o capitalismo patriarcal, tendo como meta a obtenção de direitos iguais, inclusive o direito de ter filhos ou não), o movimento feminista radical (que identificava nos homens os agentes da opressão, tomando as outras formas de opressão como extensão da supremacia masculina), o movimento feminista cultural (que se focaliza na comunidade feminina, que tem como adversários as instituições e os valores patriarcais, tendo como meta a autonomia cultural das mulheres), o movimento feminista essencialista (que defende a existência de uma essência única feminina e tem como adversário o modo masculino de ser, e como meta a liberdade matriarcal) e o movimento feminista pragmático (que se constrói por referência à luta pelos direitos das donas de casa e mulheres exploradas/agredidas e tem como adversário o capitalismo patriarcal e como meta a sobrevivência/dignidade das mulheres). Por exemplo, porque muitas outras orientações/vertentes da luta pelos direitos das mulheres existem/existiram/existirão. Para além disso, o movimento feminista relaciona-se com outros movimentos sociais na medida em que as questões ligadas à condição da mulher acabam por se interligar com questões de opressão de classe, étnica e sexual. Em alguns momentos da história, essa abertura do movimento feminista a outras lutas não existe, principalmente pela necessidade de uma auto-afirmação das mulheres enquanto grupo organizado e autónomo. Porém, com as gerações que se seguem, novas condições vão surgindo, abrindo novas possibilidades de organização e de solidariedade entre movimentos de focos diferentes. Sobreposições de opressões que se personificam, por exemplo, na mulher negra, na mulher lésbica, na mulher pobre, incentivam não só as frentes específicas dentro do feminismo, mas coloca-o ao lado de outros movimentos que se colocam igualmente contra qualquer tipo de discriminação.

No parágrafo seguinte do artigo, diz-se: "Desde tenra idade as raparigas têm vindo a afirmar-se, sem dramas ou problemas, nem olhando para o que alcançam como uma vitória sobre os rapazes. As novas gerações reivindicam a diferença positiva de género, pois olham para a igualdade de direitos, liberdades e garantias, um assunto já resolvido. Querem ter poder, para poder fazer". Isto, sinceramente, parece-me de quem cospe no prato de onde come. Porque parece que, um dia, de repente, nasceu uma nova geração de mulheres, sem antecedentes nem influência do contexto sócio-histórico em que elas, as suas mães e as suas avós nasceram, que simplesmente já não teve/tem de lutar pelos seus direitos. Já é tudo tão bom, maravilhoso, equilibrado, igualitário, e já temos tudo o que queríamos, para quê lutar mais? E lutar por quê?
No entanto, as estatísticas dizem-nos:

. As mulheres detêm apenas 1% da riqueza mundial, e ganham 10% das receitas mundiais, apesar de constituírem 49% da população;

. Quando se considera a criação dos filhos e o trabalho doméstico, as mulheres trabalham mais do que os homens, quer no mundo industrializado, quer no mundo subdesenvolvido (20% mais no mundo industrializado, 30% mais no resto do mundo);

. As mulheres estão sub-representadas em todos os corpos legislativos mundiais. Em 1985 a Finlândia detinha a maior percentagem de mulheres na legislatura nacional, com aproximadamente 32%. Actualmente, a Suécia tem o maior número, com 42%. A média mundial é de apenas 9%;

. Em média, mundialmente, as mulheres ganham 30% menos do que os homens, mesmo quando têm o mesmo emprego.

Parece realmente que isto da luta pelos direitos das mulheres, isto do "feminismo", já é mais ou menos obsoleto, não é?
No sexto parágrafo deste artigo ficamos a conhecer a Sra. Diana Mendonça, que "trabalhou como jornalista e aos 23 anos era directora de um [sic] revista de culinária. Chega à escrita pela porta da cozinha, bem longe do comportamento das militantes do feminismo que queimaram os tachos no Parque Eduardo Sétimo, em Lisboa". Em primeiro lugar, acho que essa do "chegar pela porta da cozinha" é claramente de um machismo acéfalo e asqueroso, e nem sequer sei se quem escreveu este artigo foi um homem ou uma mulher. Em segundo lugar, parece que exercer o cargo de directora de uma revista de culinária é de facto equivalente a ser obrigada a abdicar de uma carreira profissional em prol do desempenho de tarefas domésticas e do cuidado ao marido e aos/às filhos/as, porque era contra essa vida reduzida que lutavam as mulheres que "queimaram os tachos no Parque Eduardo Sétimo". A Sra. Diana Mendonça chegou ao cargo de directora de uma revista de culinária, como poderia ter chegado ao cargo de directora de outro tipo de entidade/instituição qualquer; as mulheres que "queimaram os tachos" tinham pouca ou nenhuma escolaridade e poucas ou nenhumas perspectivas de vida, que fossem além de parir, lavar, cozinhar e obedecer/depender, primeiro dos pais e depois dos maridos.
Na última página do artigo diz-se "As raparigas de hoje são femininas, sem ser feministas, e entram em campos laborais antes reservados exclusivamente aos homens, sem sentirem necessidades de se afirmarem superiores. Longe vai o ano de 1975, o primeiro em que se realizaram no nosso país eleições livres universais". A partir da leitura deste excerto, podemos perceber duas coisas: a primeira é que ser feminista é ser ultra-feminina (podemos então pensar que as feministas são mulheres que "transbordam" feminilidade); a segunda é que o facto de "as raparigas de hoje" serem "femininas, sem ser feministas" tem alguma relação com a questão do sufrágio universal, mas confesso que o meu raciocínio não consegue discernir a lógica de encadeamento que assiste a este texto.
Como enquadramento ao contributo da última entrevista, diz-se "As mulheres da nova geração não abdicam de participar em todas as áreas da vida em sociedade e ao mesmo tempo conseguir manter um equilíbrio com a vida familiar. Joana Amaral Dias tem 33 anos, um filho e uma intensa actividade laboral". Por muito respeito profissional, político e intelectual que eu tenha (e tenho) pela Dra. Joana Amaral Dias, penso que deve ter sido a escolha menos inteligente para ilustrar este tipo de afirmação. Não me parece que a Dra. Joana Amaral Dias seja o tipo de mulher que tem de “fazer das tripas coração” para conciliar a vida familiar e a vida profissional, julgo que terá, certamente, uma rede social de apoio e recursos que lhe permitam equilibrar estes dois aspectos da sua vida sem grandes malabarismos, ao contrário da esmagadora maioria das mulheres que trabalham fora de casa e são esposas e mães. Não me parece que a Dra. Joana Amaral Dias seja o tipo de mãe que tem que se levantar às 6 da manhã para adiantar algumas tarefas domésticas antes de levantar e despachar o filho, que tem de ir levar à escola de autocarro à hora de ponta, e que só voltará a ver ao fim do dia de trabalho - com sorte, se não tiver sido chamada a meio do dia de trabalho para ir levar o filho ao hospital porque partiu a cabeça no recreio, ou tiver de arranjar alguém que tome conta dele (ou ela mesma perder o resto do dia de trabalho) porque a criança ficou doente e não pode ficar na escola - quando chega a casa depois de ir buscar o filho à escola, o marido ou companheiro ao trabalho e ir fazer as compras do mês ao supermercado. Também não me parece que seja o tipo de pessoa que passa o fim-de-semana a pôr em dia a limpeza que não teve tempo de fazer durante a semana, ou a passar 10 kg de roupa a ferro, em vez de ir passear ao jardim ou visitar um museu. Isto sim, parece-me a luta diária de uma mulher pelos seus direitos, porque nem só de queimar sutiãs e tachos e odiar os homens se faz o feminismo. Como, aliás, diz a Dra. Joana Amaral Dias: "Há quem pense que o feminismo é coisa do passado ou um ataque aos homens. Ser feminista é defender a igualdade de direitos e práticas sociais entre géneros, algo que, embora tenha evoluído francamente, está ainda longe de atingir o pleno. O feminismo mudou, evidentemente, mais continua a ser necessário e a fazer sentido". Aquilo que eu gostaria de saber é se a Dra. Joana Amaral Dias tem consciência de que esta sua frase, inteligente, complexa e esclarecida, surge a coroar um artigo infantil, desinformado e alvo de investimento zero por parte dos/as seus/suas autores/as.

Em conclusão a estes dois artigos, e em conformidade com uma referência apresentada na capa da revista, apresenta-se um teste com o título “Você é uma mulher Alpha? Neste teste, procura avaliar-se a auto-estima e, assim, deduzir com que autonomia a leitora encara o seu papel de mulher. Será que você tem espírito de mulher emancipada?”. Tendo em conta que o título da secção anterior do artigo era “Raparigas Alpha”, e se fazia referência, nele, a mulheres com sucesso profissional que equilibram o investimento na vida familiar, pareceu-me coerente a introdução que se faz a este teste. No entanto, e tendo lido inicialmente, antes de ler as questões apresentadas, a caixa de texto onde se explica como fazer o cálculo dos resultados e se faz a interpretação dos resultados obtidos, confesso que fiquei chocada. Diz-se: “Some um ponto por cada resposta a) e cinco pontos por cada resposta e). Nas perguntas 7 e 9, inverta: some um ponto por cada resposta e) e cinco por cada resposta a)”, sendo que, quantos mais pontos se obtiver, mais próximo se está de ser uma “mulher Alpha”, ou seja, de obter a interpretação que diz “O mundo já não lhe mete medo. Isso você já sabe. Ou teve de fazer-se à vida, passou por um período lixado, mas ergueu a cabeça, ou os seus pais fizeram um bom trabalho. A si, cabe-lhe a tarefa (duríssima) de passar a palavra de que mulher e homem são faces diferentes da mesma moeda. Se existissem mais pessoas assim, o mundo não seria tão desigual. Mas cuidado, às vezes a segurança em demasia transforma-se em assertividade e arrogância”. Ora, da última vez que eu vi, “assertividade” não era sinónimo de “arrogância”, era uma virtude e não um defeito, ou seja, a capacidade de alegar, propor, defender um ponto de vista, expor um argumento. Mas, claro, falando-se de mulheres, é o que nos parece querer dizer este teste, quanto mais dissermos “sim senhor” melhor vistas somos.
Posto isto, passei para o questionário em si, verificando que eram apresentadas dez questões, às quais devíamos responder uma de cinco hipóteses: “a) Nem pensar nisso; b) Bem, é verdade, que hei-de faz; c) Às vezes, às vezes; d) Concordo ou e) É isso mesmo”, tendo em conta que cada resposta a) vale cinco pontos e cada resposta e) vale um ponto, invertendo-se a regra nas perguntas 7 e 9. Assim, e analisando o inquérito (como poderão fazer ampliando a imagem), chegamos à conclusão que obtemos mais pontos se respondermos “a) Nem pensar nisso” às questões 1, 2, 3, 4, 5, 6, 8 e 10 e “e) É isso mesmo” às questões 7 e 9. Ao darmos este tipo de resposta, estamos então a afirmar (respondendo “É isso mesmo”) que:

. “As pessoas à minha volta têm mais sucesso do que eu”;

. “Ser como sou e mostrá-lo é meio caminho para não gostarem de mim”;

. “Temo que os amigos me rejeitem”;

. “Se não consigo fazer o que os outros fazem, quer dizer que os outros são melhores”;

. “Se desaparecesse da face da Terra, ninguém dava por isso”;

. “Não vou fazer barulho por coisas insignificantes”;

. “Nunca serei capaz de atingir aquilo que esperam de mim”.

É isto uma “mulher alpha”? Explicaram às entrevistadas que contactaram para a elaboração do artigo que era sob esta designação e sob este conjunto de características que as enquadravam enquanto mulheres?
Se alguém quiser dar-se ao trabalho de ler o resto do teste, nomeadamente as restantes interpretações de resultados, irá certamente encontrar pérolas de investigação jornalística séria (como, por exemplo, a afirmação “Não são bichos, esses psicólogos, são médicos e há mais de cem anos que estudam esta coisa da depressão, da falta de força (…). Você vale mais do que julga. E quem acha o contrário é burro”), e talvez me possa ajudar a compreender o que é que passou pela cabeça desta gente quando se lembrou de publicar este artigo…

P.S.: Quem quiser ver este meu artigo de opinião não publicado na Focus da próxima semana, faça o favor de comprar a revista, visto que eu vou enviá-lo para lá.


O que sobrou do feminismo (Focus 367/2006)

Há cerca de duas semanas, vinha eu da Junta, quando, ao passar por uma tabacaria, a capa da revista Focus me chamou a atenção. "O que sobrou do feminismo", a imagem de uma mulher vestida (presume-se) de executiva, de tailleur cinzento de calças, sentada numa cadeira de escritório, pasta pousada ao lado da cadeira, sentada muito direita a encarar a objectiva e dar de mamar a um bebé (sublinhe-se, despido). Na capa podia ler-se ainda: "As mulheres modernas já não queimam sutiãs. Conhecem os seus direitos e recusam-se a ser, apenas, esposas e mães". Confesso, e sem sarcasmo, que foi com apetite que comprei a revista; não sei muito bem o que é que esperava ler no artigo, talvez se tivesse olhado duas vezes para a capa, e pensado sobre aquilo que diziam, não a tivesse comprado, mas ainda bem que o fiz. Não costumo comprar a Focus, antes desta tinha comprado apenas uma, e já na altura, lembro-me, fiquei surpreendida por o artigo que faz a capa da revista se encontrar nas últimas páginas da revista, ou seja, é o último artigo, depois até das cartas de opinião dos/as leitores/as. Quanto a mim, e não percebo nada de marketing de imprensa, parece-me uma escolha pouco inteligente. E, mais uma vez, confirmou-se: numa revista de 130 páginas, o artigo que faz a capa estende-se da página 122 à página 129 (fica apenas a uma página do fim, sendo esta última página dedicada a notícias fictícias em jeito de comic relief).
Já um bocadinho farta de folhear a revista, e pensar que se tinham enganado e esquecido de incluir no corpo da revista o artigo que faz a capa, cheguei finalmente ao que me tinha levado a comprar a revista. E, novamente, em título, se perguntava: "O que resta do feminismo. Nos anos 60 queimaram os sutiãs. Agora usam wonderbra. A vida das mulheres mudou; mas será que mudou assim tanto?", e novamente surge a imagem da "executiva", desta vez falando ao telemóvel, de pé, e o bebé surge dentro da pasta que ela transporta agora a tiracolo. Confesso que achei curiosa a escolha da manequim para esta sessão fotográfica: está com um ar tão infeliz, e um olhar tão fixo, uma sugestão de olheiras debaixo dos olhos sem expressão, será que passou a noite acordada por causa das cólicas do bebé?...
O artigo começa com um excerto de uma entrevista à Dra. Maria Filomena Mónica, que afirma: "É possível a uma mulher dizer 'não limpo o pó, não aspiro, não vou ao supermercado, não faço nada'. Mas é muito difícil a uma mãe dizer 'eu não dou biberão ao meu filho, dás tu'. Eu acho que o último reduto da luta das mulheres estabelece-se no tratamento dos filhos". Ao ler isto, penso que gostaria de chegar à idade da Dra. Maria Filomena Mónica e ter tanta certeza daquilo que digo e penso, porque ela tem, ou aparenta ter, a certeza de que as mulheres não sabem não amar os filhos. Será isto verdade? Será que todas as mulheres do mundo amam incondicionalmente os filhos, nunca os rejeitam, nunca desejam não os ter tido, nunca os negligenciam? E os homens? Aparentemente, diz a Dra. Maria Filomena Mónica, aos homens, pais, é possível, eu diria mesmo, à luz do que se afirma, natural dizer "não cuido do meu filho". Será isto verdade? Será esta a complementaridade dos papéis do homem e da mulher enquanto pai e mãe? A mãe cuida e o pai descuida, e a isso são obrigados/as, por alguma espécie de natureza inerente ao género?
Depois deste excerto, a Sra. Jornalista Paula Maria Simões começa o seu contributo enquanto autora deste artigo, afirmando: "Desde o tempo em que começaram as reivindicações das mulheres por direitos iguais aos homens, na década de 60, a situação melhorou em grande parte dos casos (...)". Foi aqui que eu finalmente percebi do que trata este artigo. Não se trata de descobrir "o que resta do feminismo", mas sim de dizer "o que resta do que eu sei sobre o feminismo", e percebe-se que a Sra. Jornalista Paula Maria Simões, ocupada que esteve em transcrever entrevistas (tem excertos de quatro entrevistas num artigo de treze parágrafos), se esqueceu de procurar informações sobre o tema que fossem um pouco para além daquilo que ela julgava saber sobre o movimento feminista. Qualquer visita menos atenta ao um pólo de agregação de informação tão democrático como a Wikipédia ter-lhe-ia permitido descobrir que, antes dos sutiãs queimados de que ela tanto gosta de falar (duas referências, e ainda antes de se entrar no corpo do artigo), por exemplo, se celebra o dia 8 de Março como Dia Internacional da Mulher (dia comemorativo para a celebração dos feitos económicos, políticos e sociais alcançados pela mulher) em memória do incêndio na fábrica da Triangle Shirtwaist (Nova Iorque, 1911) em que 140 mulheres perderam a vida. Ou que, por exemplo, o movimento pelo sufrágio feminino (que é como quem diz, pelo direito das mulheres a votarem) teve início em 1897, com a fundação da União Nacional pelo Sufrágio Feminino por Millicent Fawcett (1847-1929), uma educadora britânica. O movimento feminino ganhou, então, as ruas e as suas activistas passaram então a ser conhecidas pela sociedade em geral pelo (à época, ofensivo) epíteto de sufragistas, sobretudo aquelas vinculadas à União Social e Política das Mulheres (Women's Social and Political Union - WSPU) movimento que pretendeu revelar o sexismo institucional na sociedade britânica, fundado por Emmeline Pankhurst (1858-1928). Após ser presa repetidas vezes com base na lei "Cat and Mouse", por infrações triviais, inspirou membros do grupo a fazer greves de fome. Ao serem alimentadas à força e ficarem doentes, chamaram a atenção para a brutalidade do sistema legal na época e também divulgaram sua causa. Ela foi uma militante que imprimiu um estilo mais enérgico ao movimento, o qual culminou com situações de confronto entre sufragistas e policiais e, finalmente, com a morte de uma manifestante, Emily Wilding Davison (1872-1913), que se atirou à frente do cavalo do rei da Inglaterra no célebre Derby de 1913, tornando-se a primeira mártir do movimento. E embora o sufrágio universal seja já uma realidade maioritária em quase todo o mundo, em países como o Kuwait, por exemplo, há ainda movimentos que reproduzem as mesmas lutas das sufragistas do século XIX, na tentativa de forçar o governo daquele país a mudar a sua legislação eleitoral e adoptar o voto universal em pleno século XXI. Pois é. Parece que ainda há países em que as mulheres não têm direito a votar. E parece que muitas mulheres morreram, não há muitas décadas atrás, na defesa de direitos aparentemente tão fundamentais como o direito ao trabalho e o direito ao voto. E parece, em suma, que antes dos sutiãs na década de 60, já se fazia qualquer coisinha pelos direitos das mulheres. E quanto a essa história dos sutiãs queimados, diz-se que é um mito, como tantos outros, criado por homens para ridicularizar as lutas das mulheres pelos seus direitos, mas disso eu suponho que a Sra. Jornalista Paula Maria Simões nunca tenha ouvido falar. Já a Dra. Maria Filomena Mónica afirma "Acho que os movimentos de mulheres contribuíram para a emancipação. A única coisa que eu critico é que às vezes exageraram. Era ridículo queimarem sutiãs na praça pública. (...) Elas podiam vingar-se: durante um século, os homens deviam fazer de mulheres para ver o que custava a vida". Estou a citar, juro, não estou a inventar. Esta senhora diz que os movimentos feministas eram, por vezes, exagerados e ridículos, e que uma via muito mais plausível de luta feminista seria a de obrigar os homens a "fazerem de" (seja lá o que for que isto signifique) mulheres durante um século.
Mais à frente no artigo, apresenta-se um excerto de uma entrevista à Sra. "Ana Helena, de 40 anos, tem três filhas", que, diz-se: "Nunca sentiu discriminação no mercado do trabalho. 'Mas sabemos que isso existe, não é? É muito difícil conciliar vida familiar com o trabalho por questões de tempo.' (...) Mas para ela existe sempre uma jornada de trabalho dupla. 'Vou buscar o meu marido à estação (...). E tenho até às nove e meia para gerir tudo. Dar atenção às miúdas, arrumar a casa, preparar o dia seguinte, pô-las na cama. É um desgaste enorme'." Mais à frente, numa secção do artigo intitulada "Raparigas Alpha", Raquel, que "acabou de entrar no curso de Farmácia (...) com uma média final de secundário de 17,7 (...) admite que é obcecada por cinema e que sai imenso com as amigas, estando a anos-luz de ser 'ratinho de biblioteca'", afirma: "Não é para me gabar, mas no geral os rapazes com quem estudei eram piores alunos do que eu (...). Acho que as raparigas são mais maduras e dedicadas ao futuro. Em geral trabalhamos mais para atingir os nossos objectivos". Embora estas duas entrevistas possam, à primeira vista, ter pouco a ver uma com a outra, parece-me importante perceber que a noção que estas mulheres têm da "discriminação" é, digamos, curiosa: discriminação, para elas, parece ser ter alguém a barrar-lhes fisicamente a entrada da escola ou do local de trabalho dizendo-lhes, abertamente, "Não entras porque és mulher". Ou, caso tenham possibilidade de entrar, serem obrigadas a andar a lavar sanitas ou chãos, enquanto que homens com as mesmas habilitações podem desenvolver trabalho a sério, ou então serem obrigadas a estudar ao frio e à chuva, a escrever em quadros de ardósia, sem livros, sem material. Isto sim, deve ser discriminação. Porque trabalhar, em média, mais duas horas por dia (nomeadamente no desempenho de tarefas domésticas), para além da jornada de trabalho, que os homens, não deve ser discriminação. Porque, quando somos pequenas, oferecerem-nos bonecas e louça de brincar, enquanto que aos rapazes oferecem bolas e jogos, não deve ser discriminação. Os rapazes brincam a ser astronautas, cowboys, super-heróis, soldados. As meninas brincam a ser mães e donas de casa, com alguma imaginação professoras ou princesas à espera do príncipe ecantado. E isto não é discriminação, é a nossa essência enquanto mulheres, aparentemente. "Em geral trabalhamos mais para atingir os nossos objectivos", mas isto não é discriminação. As mulheres têm de ser sempre melhores que os homens para serem colocadas ao mesmo nível, mas isto não é discriminação. Desde que partilhem os brinquedos, mesmo que os brinquedos continuem a ser deles, não estamos a ser discriminadas, ou pelo menos assim se pode depreender do que se diz neste artigo.
O artigo termina com esta afirmação da parte da Sra. Jornalista Paula Maria Simões: "Apesar dos pesares, de ainda ganharem menos do que os homens, de terem de se submeter ao aborto ilegal, e da desequilibrada divisão de tarefas, da agenda das mulheres actuais passaram a constar já outras questões". Assim mesmo. Aparentemente, as questões da desigualdade salarial, do direito ao aborto livre e da partilha de tarefas domésticas são já questões, se não ultrapassadas, em vias de se ultrapassarem, porque, de facto, as "mulheres actuais" já não têm de se preocupar com tais questões menores. São "pesares", como diz a Sra. Jornalista Paula Maria Simões, mas a vida não acaba aí. Acho curioso como é que uma revista que se diz "semanário de grande informação" trata deste tipo de problemáticas com a mesma leveza, ou com a mesma importância que atribui à relevância da relação entre a Jornalista Fernanda Câncio e o Primeiro-Ministro José Sócrates para a agenda política do Governo. Isso leva-nos a pensar: será que se o Primeiro-Ministro namorasse com a Dra. Maria Filomena Mónica, seria aprovada uma lei que obrigasse os homens a "fazerem de" mulheres durante um século?

sábado, 23 de setembro de 2006

Für Demian

"E ela falou-me de um rapaz que se enamorara de uma estrela. De pé, junto ao mar, ele estendia os braços e orava à estrela; sonhava com ela e dirigia-lhe os seus pensamentos. Todavia, ele sabia, ou julgava saber, que um corpo celeste não poderia ser abraçado por uma pessoa. Considerou ser destino seu, sem qualquer esperança de realização, amar um astro. Assim, partindo desta ideia, criou um modo de vida de renúncia e sofrimento, silencioso e fiel, que havia de torná-lo melhor e de purificá-lo. Os seus sonhos, porém, eram todos dirigidos à estrela. Certa vez, de novo junto ao mar, estando no cimo da escarpa elevada, olhava a estrela, ardendo de amor por ela. Num momento de maior anseio, deu um salto e arremessou-se para o vazio, em direcção ao astro. No entanto, no momento de formar o impulso, num relâmpago, ainda pensou: na realidade, isto é impossível! Lá no fundo, sobre a praia, estatelou-se, ficando aniquilado. Ele não sabia amar. Se, no momento do salto, tivesse tido força interior para acreditar, firme e inabalavelmente, na sua concretização, voaria para o alto e ter-se-ia unido à estrela.
(...)
Noutra altura, porém, propôs-me outro conto. Tratava de um enamorado que vivia sem qualquer esperança. Fechara-se totalmente na sua alma, julgando-se abrasado de amor. Para ele, de súbito, o mundo deixou de existir: já não via o azul do céu nem o verde da floresta não ouvia o regato murmurar, a arpa não era melodiosa. Tudo se desfizera e ele ficara pobre e miserável. O seu amor, contudo, ia crescendo, e ele preferiria morrer e degradar-se a renunciar à posse da linda mulher que amava. Nisto, deu-se conta de que o seu amor devorava tudo o mais no seu íntimo e adquiria vigor, e atraía, atraía. E a bela mulher, não podendo resistir, aproximou-se; ele aguardava-a de braços abertos, para a apertar contra si. Mas, no momento em que ela se encontrava perante ele, estava completamente transformada e, num arrepio, sentiu que atraíra a si todo o mundo, antes perdido. Ela estava diante dele e entregou-se-lhe; o céu e a floresta, o regato, tudo veio ao seu encontro, em cores brilhantes, maravilhoso: pertencia-lhe e falava a sua linguagem. E, em lugar de conquistar somente uma esposa, o seu coração abarcara o mundo inteiro, e cada estrela do céu cintilava dentro dele, irradiando energia de vida na sua alma... Ele amara e encontrara-se por meio desse amor. A maioria das pessoas, pelo contrário, ama para por ele se perder."


Hermann Hesse (1925)


sexta-feira, 22 de setembro de 2006

Gata e cães

Hoje escrevo sobre uma gata e três cães. A Luna, o Titan, o Puskas e o Jimmy.
Tinha oito anos quando adoptei o Titan. Lembro-me perfeitamente, como se estivesse agora a passar-se aqui à minha frente, do dia em que o fui buscar. Era uma bolinha de pelo, malhado de castanho e preto, uns olhos pretos como dois berlindes. Nessa noite, mal dormi, só queria olhar para ele e brincar com ele. Dormia num caixote de cartão, na cozinha, e o meu passatempo favorito era dar pancadinhas na borda do caixote, e lá ele levantava a cabecita e vinha empoleirar as patas no sítio onde eu tinha batido. Era um Serra D'Aires, um cão pastor, e, já mais crescido, sabia muito bem aquilo que lhe pertencia. Quando alguém me pegava ao colo, e ele andava nas redondezas, não gostava. Rondava a pessoa, arranhava-lhe as pernas com a pata e, se isso não fosse suficiente para que me pusessem no chão, rosnava. Nunca foi daquele tipo de cão que gosta de brincar com a bola: depois de lha chutarmos, bem podíamos ir à nossa vida, porque ele parecia não perceber a lógica, parecia pensar "Então, chutaste-me a bola, agora é minha, o que é que queres mais?". Lembro-me do meu espanto quando descobri nele aquele reflexo de dar à pata traseira quando lhe fazíamos festas numa determinada zona debaixo da pata dianteira; passou a ser o meu novo entretenimento. Passava horas nisto, e a pedir-lhe a pata (que dava sempre, às vezes mesmo sem lha pedirmos, lá estava ele de pata no ar) e a fazer-lhe juras de companheirismo. O Titan morreu faz, em Dezembro, dois anos. Faria 13 anos daí a dois meses.
O Puskas foi adoptado cinco anos depois. Foi oferecido, acabado de nascer, a uma prima, que, não o podendo manter, o deu à minha tia, que, por sua vez o remeteu aqui para casa. Quando o fomos buscar, veio dentro da tampa de um daqueles caixotes das resmas de papel, porque era tão pequenino que não precisava de mais. A mãe era vadia, teve a ninhada perto de uma casa, e a pessoa pegou nos cachorros e deu-os, por ter pena de os ver crescer abandonados. Parecia mesmo um ratinho, amarelo e de olhinhos fechados. Depressa quis fazer ver que, dentro daqueles "invólucro" minúsculo, havia um leão em potência, e tomou conta aqui de casa, incluíndo móveis (alguns deles mantém, ainda hoje, a marca da sua passagem) e o "irmão mais velho", que às vezes preferia fugir a enfrentá-lo. Era o "ai jesus" da família, o meu avô até tinha o hábito de levá-lo a passear dentro de um saco daqueles de ir às compras ao mercado. Há cerca de cinco anos, mais ou menos, começou a paralisar nas patas traseiras na altura do frio. Quando a manhã surgia mais fresca, ele sentava-se à porta da cozinha, e lá ficava, a tremer, sem se conseguir mexer. No veterinário, descobrimos que tinha uma hérnia discal, em virtude de ser muito comprido para a altura que tem. Depois de algumas semanas de tratamento com cortisona, lá melhorou, mas, invariavelmente, chegando o frio, volta a paralisia. O veterinário explicou que se vão formando hérnias discais novas, porque as antigas vão solidificando, e que operar pode não resolver nada, porque pode paralisá-lo definitivamente. Apesar da mobilidade dele se ter vindo a deteriorar, a verdade é que nunca se deixou ficar a um canto. Aliás, às vezes faz até impressão, porque quer correr, apesar de ter muita dificuldade em equilibrar-se em movimento, e acaba por arrastar-se. Mas incha, desincha e passa. Agora já não é só um leão em potência, é um verdadeiro leão, cheio de coragem e genica, e, desde que o Titan morreu, é ele que comanda as hostes por aqui.
O Jimmy faz parte da família há quatro anos. É um Retriever do Labrador, e acho que isso já diz muita coisa. É como uma criança pequena; aliás, eu acho que, na cabeça dele, ele continua a ser um cachorrinho recém-nascido, apesar de pesar mais de 50 quilos e atirar qualquer um/a ao chão. É preto, mas tem uma particularidade, porque tem algumas manchas brancas, como uma que parece uma gravata, porque fica mesmo na zona do peito e algumas nas patas, como se tivesse andado na farinha. Quando veio cá para casa, era uma paródia, porque alternava fases de actividade eufórica com fases de sono profundo, em que até o podíamos virar de cabeça para baixo, porque era como se estivesse em coma. Tudo para ele é brinquedo, mas a predilecção dele vai, de facto, para a bola. Já teve mais de vinte, neste momento tem quatro, mas a todas dá privilégios de "filha única", basta que alguém tropece numa, ainda que acidentalmente, e lhe imprima algum movimento; é o suficiente para, se quisermos, o mantermos ocupado durante horas. Mas, quando digo horas, é mesmo "só pára quando cair para o lado", e, mesmo assim, já várias vezes o vi a espumar, a arfar e a tossir (mais cinco minutos e tinha um enfarte) e só parava de correr a ir buscar a bola se a escondêssemos. O último passatempo de eleição é "roer-nos" o braços: abocanha-nos os pulsos e finge que morde, mas apenas o suficiente para nos barrar de baba radioactiva.
A Luna é a minha gata. Só posso falar da experiência de "ter uma gata", porque só tive e tenho esta, e é o meu primeiro animal de estimação, porque aos cães refiro-me como sendo dos meus pais. Nasceu por volta do dia 27/Agosto de 2004, e adoptei-a a 7/Novembro; foi o seu primeiro dia comigo. Antes disso, já era minha. Aliás, antes de nascer já tinha nome, e tinha mesmo que ser minha, porque tem uma manchinha branca em forma de lua no lombo (em pequenina era mais definida, agora está a transformar-se numa lua de arte abstracta). Quando ela chegou lá a casa, eu não conhecia o cheirinho característico dos gatos bebés, e enfiava o nariz na cabecita dela para a cheirar e era como se me invadisse uma sensação de bem-estar. Logo desde o início, ronranava sem sequer lhe tocarmos, e ainda hoje é assim, basta começarmo-nos a aproximar e a falar para ela e liga logo a "pilha". Aprendeu a ir ao caixote logo na primeira noite, não sei como, e desde então só nos pregou partidas duas ou três vezes. Dormia sempre a seguir ao almoço, estendida no sofá e eu pegava nela ao colo e ficava a admirá-la, a tocar-lhe, a reconhecer-lhe o corpo, e ela nunca acordava.


Depressa aprendeu as "turras" (que às vezes nos aplica com bastante intensidade), a responder ao nome (mesmo que esteja deitada, mexe as orelhas se ouve o som do nome dela) e a miar muito, muito, imenso, e nós a miar em resposta (hoje arrependemo-nos um pouco desta parte...). Gosta de dormir em cima da roupa lavada, mas qualquer tipo de roupa serve, principalmente aquela que nós colocamos em cima da cama para vestir daí a dois minutos. E de sacos, qualquer tipo de saco, de plástico ou de papel, e de ficar lá dentro, muito quietinha, até alguém se aproximar, e aí encarna o "monstrinho do saco". E de se agarrar aos nossos braços com as patas dianteiras, enquanto nos abocanha a mão e dá "coices" com as patas traseiras. E que coloquemos a mão a alguma altura na parede (de preferência sem qualquer intenção de brincar com ela); coloca-se por baixo dela, em posição de tomar impulso, arregala muito os olhos e salta para a apanhar.


O que ela não gosta é que a gente fale alto; morde-nos e refila. E de Whiskas de sardinha. E que confundamos o tempo de exercitar o felídeo selvagem que existe dentro dela com tempo de brincadeira; cada coisa no seu lugar!
Há quem diga que os gatos não são animais de estimação, porque são demasiado independentes e nos usam. Eu, que já tive três cães e agora tenho uma gata, penso poder afirmar que sou o tipo de pessoa que prefere os gatos. Os gatos sabem ser carinhosos (com quem lhes inspira carinho), mas não nos vêm lamber a mão depois de lhes darmos uma palmada. É essa, para mim, a principal diferença entre cães e gatos.


sábado, 9 de setembro de 2006

Covers up, I cast you off... I'll be watching as you breathe...


Thin Air
There's a light when my baby's in my arms.
There's a light when the window shades are drawn.
Hesitate when I feel I may do harm to her.
Wash it off, 'cause this feeling we can share.

And I know she's reached my heart in thin air.

Byzantine is reflected in our pond.
There's a cloud, but the water remains calm.
Reaching in, the sun's fingers clutch the dawn to pass
Even out, it's a precious thing to bear.

And I know she's reached my heart in thin air.
And I know she's reached my heart in thin air.

It's not in my past to presume,
Love can keep on moving in both directions.
How to be happy and true
Is a quest we're taking on together.
Taking on, on , on...
Taking on, on , on, on...

There's a light when my baby's in my arms.
And I know she's reached my heart in thin air.
And I know she's reached my heart in thin air.
And I know she's reached my heart in thin air.
Yes I know she's reached my heart.

sexta-feira, 8 de setembro de 2006

Não digas nada... Fecha os olhos e sente.

The waiting drove me mad...you're finally here and I'm a mess

Don't it make you smile?
Don't it make me smile?

When the sun don't shine, it don't shine at all

Don't it make me smile?


I couldn't breathe, holdin' me down
Hand on my face, pushed to the ground

Enmity gauged, united by fear

Forced to endure what I could not forgive...

And fuck me if I say something you don't wanna hear
And fuck me if you only hear what you wanna hear

I wish I was the evidence, I wish I was the sound
For 50 million hands upraised and open toward the sky

I miss you already... I miss you always I miss you already... I miss you all day

If I don't fall apart, will the memories stay clear
So you had to go, and I had to remain here

But the strangest thing to date

So far away

And yet you feel so close

And I'm not gonna question it any other way


There must be an open door

For you to
Come Back

terça-feira, 4 de julho de 2006

Frivolidades, ou Breve História Pessoal dos Ciclos da Moda

Chegaram ontem as minhas All-Stars novas, que encomendei via catálogo há algumas semanas atrás. São verdes (tipo tropa, ou, como diz no catálogo, "caqui"), assim meias a desfazerem-se nas costuras (no catálogo diz que é "acabamento em bruto"), têm atacadores beges e a borracha não é bem branca, é mais a atirar para o cinzento. Depois de largos meses a procurar resistir à moda das All-Stars, cheguei à conclusão de que gostava realmente e suficientemente das sapatilhas para comprar umas, e aproveitei uns saldos para ceder à tentação. Cheguei hoje à conclusão de que passaram dez anos desde que tinha comprado as últimas (e únicas, por sinal; eram também verdes, por curiosidade, mas não eram "vintage" como estas, eram o estilo normal), e debrucei-me a reflectir sobre os ciclos da moda, no que diz respeito à roupa/calçado/acessórios que utilizamos.
Quando eu estava mais ou menos a entrar na adolescência (13-14 anos), ressurgiu a moda das calças à-boca-de-sino e das calças pata-de-elefante (para quem não está familiarizado/a com este termo, refere-se àquelas calças que alargam logo a partir do meio da coxa, ao contrário das à-boca-de-sino, que alargam só a partir do joelho). Na altura, a minha mãe ficou encantada com este ressurgimento, e desatámos logo a reciclar as calças que ela própria usara há mais de 20 anos atrás. A minha mãe nasceu em 1960, portanto viveu a adolescência nos anos 70, e posso dizer que tive o privilégio de usar roupa genuinamente "vintage" (alguma dela ainda hoje uso, mas basicamente as túnicas e casacos, porque digamos que a adolescência tem muito que se lhe diga, e as calças já deixaram de me servir há muitos anos…), e sem ter de pagar exorbitâncias por isso (como agora se vê por tudo quanto é loja de marca, calças praticamente a desfazerem-se, de tão processadas, pela módica quantia de 30 ou 40 contos - ou mais, mas eu ainda sou "pobrezinha" demais para entrar sequer em lojas que vendam roupa acima desse preço...). Desde essa altura nunca mais consegui largar as calças à-boca-de-sino e pata-de-elefante, sou sua fiel adepta há quase 10 anos, realmente acho que são os cortes que me assentam melhor, mesmo agora que - diz-se por aí - já não se usa esse corte; ou seja, mais uma vez, já passou de moda. Parece que hoje a moda, no que a calças diz respeito, são as de corte direito, mais ajustadas, e se possível com a bainha virada para fora. Tenho de confessar de também já aderi, comprei as minhas na semana passada, já com vista à chegada das All-Stars, e a minha avó teve a amabilidade de me costurar umas bainhas bem "fashion", em zig-zag (a minha avó é a deusa da costura, salvé!). Já tinha experimentado vários modelos, em várias lojas, todas dentro desse estilo, e já estava praticamente convencida de que não servia para mim (o corpo tem destas coisas, não se adapta a todas as modas!... Ou, pelo menos, o meu…), até que fui à Bershka (a única loja onde ainda consigo comprar umas calças decentes por menos de 30 euros, e onde, de resto, compro sempre as calças, passo a publicidade...), onde já não ia há vários meses, e senti-me tão realizada por, finalmente, ao fim de tantas experimentações por tudo quanto é loja, encontrar umas calças que me caíam bem, que não resisti e acabei por comprar a calcinha da moda, com direito a bainha virada para fora e tudo!... Mas, de facto, devo estar a ficar muito antiga, porque aquilo na etiqueta dizia "cintura média" (por oposição a "cintura subida" e/ou "cintura descaída"), mas eu tenho que passar a vida a puxá-las discretamente para cima, porque aquilo é quase pornográfico; nem quero imaginar o que seria, na cabeça deles/as, designers de moda, umas calças de cintura descaída...
Quanto às calças justas também tenho qualquer coisa a dizer, como não poderia deixar de ser: é/foi uma moda, tanto quanto sei, vinda dos anos 80, emergente do fenómeno "punk", e pela qual também passei, mais ou menos por volta dos 10, 12 anos, embora nessa época a matriz punk já se tivesse mais ou menos dissolvido, e então havia-as de todas as cores; eu, pessoalmente, tive umas azul-celeste, umas beges, umas azul-escuro, umas castanhas e umas pretas (tanto quanto me lembro), justas como collants, mas as minhas preferidas eram de facto as pretas, usava-as imenso, ao ponto do meu pai me inventar a alcunha de "barrote queimado", quando me vestia de preto integral e pesava para aí 35 quilos… Devo ainda acrescentar que esse modelo de calças, elásticas e justíssimas, é em grande parte responsável por haver por aí tanta rapariga de 20 e poucos anos cheia de estrias nas coxas, porque aquilo era uma sentença de morte para a circulação sanguínea, eu própria sou prova viva disso, e doarei o meu corpo à ciência na altura propícia...
E então pronto, hoje lá saí à rua com as calças e as sapatilhas da moda, e, pelo sim, pelo não, uma t-shirt não muito curta, porque se há coisa que não gosto (nessa moda, garanto que não me apanham) é andar pela rua de cuecas à mostra, por mais bonitas (e/ou caras) que elas sejam!Quanto às All-Stars, razão primordial deste post, fizeram-me chegar à conclusão de que, realmente, o tempo passa a correr, e que estamos, de facto, numa era em que a informação corre à velocidade da luz: as calças à-boca-de-sino e pata-de-elefante, bem como as túnicas, demoraram mais de 20 anos a reentrar na moda, enquanto que não passaram ainda dez anos desde que as All-Stars "saíram de circulação", para já voltarem a entrar. O que hoje é moda, amanhã, ou o mais tardar para o ano, deixará de ser, e quanto mais o tempo passa, mais rápido será este fenómeno cíclico, porque de facto assim o é: alguém "inventa" uma moda, toda a gente (ou quase...) adere, quando se torna vulgar desaparece, para voltar a reaparecer alguns anos depois, quando alguém descobre a(s) dita(s) peça(s) remetidas para um qualquer fundo de baú, e se lembra da razão pela qual a(s) comprou em primeiro lugar: porque gostava dela(s), e não apenas porque estivesse(m) na moda... Sim, porque, na minha cabeça, no meu mundinho utópico, as pessoas ainda compram as coisas porque gostam delas, e porque se sentem genuinamente bem com elas, e não apenas porque a/o amigo/a também usa... É mais ou menos como os acessórios dourados e prateados (em ouro e prata genuínos ou a imitar, conforme as possibilidades de cada um/a), parece que agora estão outra vez “na berra”, e tanto quanto sei a primeira vez que foram moda foi no início dos anos 90, mais ou menos com a emergência do fenómeno “rap” e “hip-hop”. Aliás, lembrei-me no outro dia que tive umas sabrinas douradas, que inclusive usei no primeiro dia de aulas, quando entrei para a Escola Primária, tenho até várias fotografias com elas calçadas… Se soubesse o que sei hoje, e os meus pés não tivessem crescido estupidamente desde então, acho que as tinha guardado, porque isto uma pessoa nunca sabe…!




(foto retirada de www.shinkareff.ru)

sábado, 1 de julho de 2006

Carta - Parte I

Saíndo um pouco daquilo que tem sido a regra deste blog, a publicação de textos originais e anteriormente desconhecidos para os/as seus/suas leitores/as (todos os/as três ou quatro...), resolvi publicar um texto que já foi escrito há alguns meses atrás, mas para cuja publicação me senti especialmente inspirada depois da visita a um blog muito interessante... São excertos do meu texto original, que está ainda em processo de construção, como poderão perceber, e que não sei ainda quando (se...) será concluído...


«Meu filho, sou a tua mãe. Tenho 21 anos e dois meses, mas, quando tu nasceres, não vais poder olhar para mim como sou agora, mas apenas como serei quando te puder dar à vida. Não serei certamente, nem aquilo que julgo ser agora, nem o que sonho vir a ser. Serei aquilo que a vida fizer de mim até lá, e serei a tua mãe.
Agora que me sento a pensar em ti, gostaria de ter começado a escrever-te mais cedo, porque gostava que me tivesse conhecido para além deste relato. Gostava que um dia, quando tiveres idade para te identificares com o que aqui escrevo, tivesses possibilidade de me idealizar como uma pessoa, uma identidade, e não "apenas" a tua mãe. Todos chegamos a uma altura na vida em que aprendemos a olhar os nossos pais como pessoas, tal como nós, mas hoje, que me sinto capaz de o fazer em relação aos meus pais, penso que tudo seria mais fácil, para nós e para eles, se essa capacidade surgisse mais cedo. Se os pais pudessem, por vezes,
ser menos pais e mais pessoas. E é assim, filho, que gostava que me pudesses ver: a rir, a chorar, a pensar, a viver, e não apenas a ser a tua mãe. Gostava que soubesses que, antes de tu nasceres, eu fiz muitas coisas, entre as quais amigos, asneiras, viagens, aprendizagens, e que tive uma vida cheia (...).
Depois de tu nasceres, filho, espero poder vir a fazer e a ter ainda mais, mas nunca mais voltarei a ter e a ser aquilo que tenho e sou agora, tal como neste momento já não sou aquilo que era quando tinha 16 anos... Enfim, como tu um dia hás-de saber, viver é perder e ganhar, e quando tu
nasceres, eu terei perdido aquilo que sou hoje, mas terei certamente ganho outras identidades. Filho, gostava que soubesses que, por vezes, perder pode ser tão bom como ganhar. Perder ensina-nos a lutar e a mantermo-nos abertos e atentos aos sinais que a vida nós dá. Às vezes, como hás-de perceber, as maiores conquistas surgem depois de grandes perdas. E é assim que nos vamos construíndo e aprendendo quem somos.
Escrevo-te agora estas palavras porque tenho medo de um dia, quando precisares de as conhecer, eu não tenha coragem de tas dizer. Porque, nessa altura, tenho medo de estar demasiado ocupada a querer ser tua mãe, e de me ter esquecido de continuar a ser a pessoa esclarecida e aberta que julgo ser agora. Temo esquecer-me que um dia desejei ter a capacidade de te dar asas e ajudar-te a preparares-te para ser uma pessoa completa, íntegra, humana, sabendo que só serás feliz quandos fizeres as tuas próprias aprendizagens e descobrires o teu próprio caminho. Espero que, lendo estas palavras, venhas um dia a perdoar-me por querer viver por ti, por te obrigar a seguir um percurso que não é o teu, porque assim saberás que, embora eu te tenha magoado (porque, de certeza, o farei), o que desejo para ti é o melhor, e só quero que um dia venhas a encontrar-te e a saber quem és, porque é isso que realmente importa na vida.
Não tenho sonhos para ti, filho. Não quero com isto dizer que não te desejo ou que não te amo, mesmo agora, que ainda não passas de um anseio meu. Quero apenas que saibas que não tenho expectativas em relação àquilo que hás-de ser: não quero que sejas loiro ou moreno, que tenhas olhos castanhos ou azuis, que sejas alto ou baixo, que venhas um dia a ser médico ou polícia. Quando penso em ti, agora, e te desejo na minha vida, não é isso que ocupa o meu pensamento: quero apenas ter a capacidade de te proporcionar uma infância feliz, porque isso é o fundamental e só isso te permitirá vir a ser uma pessoa boa e viveres a tua vida de modo a tornares-te uma pessoa realizada.
A memória mais antiga que tenho da minha vida é muito feliz: estou em casa dos meus avós, com o meu avô, e finjo preparar comida que lhe dou a provar. Tinha dois anos. Passam agora quase um ano e dois meses desde que ele, o meu avô João, o teu bisavô que hás-de apenas conhecer através dos relatos de quem o amou e teve a benção de o conhecer, morreu. Sinto muitas saudades deles e sinto muita falta da presença dele na minha vida, mas sinto-o muitas vezes bem perto e recebo dele muitos sinais que me fazem sentir que, de alguma maneira, ele continua por aí a olhar por mim. Gostava que, pelo menos nesse aspecto, pudesses ser como eu fui: pudesses ter a vida cheia de histórias doces de criança. Que pudesses (...) ouvir contar histórias de outros continentes, de outros tempos, de grandes viagens, daqueles que foram antes de ti e que, sem saberes, te legaram muito daquilo do que és hoje.
Uma das razões pelas quais tenho algum receio de pensar em ter-te, filho, prende-se com essa incerteza de saber se vou conseguir proporcionar-te aquilo que desejo para ti nesta etapa tão importante da tua (e da minha) vida: gostava que, quando fosses adulto, pudesses olhar para trás e pensar na tua infância como um período feliz, e pudesses lembrar-te de mim como um elemento presente e activo dessas memórias. Queria poder garantir que serás uma criança equilibrada e que nunca sentirás a minha falta (...), porque o que mais desejo (...) é poder acompanhar-te, ver-te crescer e estar presente nos momentos importantes da tua vida. Assim, filho, só peço a Deus que me permita essa disponibilidade, porque acho que uma das coisas mais tristes do mundo é um pai ou uma mãe que não conhece os seus filhos. Quero muito conhecer-te e quero também muito que me conheças e saibas que, aconteça o que acontecer, vou querer sempre fazer-te tão feliz quanto estiver ao meu alcance. (...)»




domingo, 18 de junho de 2006

Cru

Ora te nego, ora te ponho no peito,
E, na verdade, hei-de querer-te sempre.
És o meu lado luz, o meu lugar feliz.

Passo as mãos pelo corpo,
E, nele, tu. Em cada grito, em cada sopro,
em cada lágrima ou riso, tu.

Olho os espelhos, e eu neles,
Crua, sem jogos, sem vícios,
E assim me dou ao pulsar dos dias juntos,

À febre dos sentidos, acesos por segredos confessos.
A carne fervilha ao toque impaciente
Dos dedos sôfregos, dormentes da solidão.

E nos destroços da ardência,
Nos afectos quietos dos amantes exaustos,
Ficam as mãos, em laços, e nelas as raízes de nós.



sábado, 20 de maio de 2006

As pessoas das nossas vidas

As pessoas que melhor nos fazem são aquelas que têm a capacidade de nos fazer sentir competentes e incompetentes, na(s) altura(s) certa(s). Tive essa experiência pela primeira vez quando tinha 14 anos. Tinha uma amiga e um amigo, ela pouco mais nova que eu, ele alguns anos mais velho, com quem partilhei muitas experiências significativas, que ainda hoje recordo, com embaraço e ternura, conforme a disposição.
Ela, sendo mais nova, era também menos experiente, em diversos aspectos da vida, e reconhecia-me competência, pedindo-me conselhos e desabafando as angústias próprias daquela idade da vida que pensamos nunca mais terminar. Muitas vezes nos sentávamos no quarto dela, manhãs e tardes dentro, despindo as convicções de meninas e vestindo as inseguranças de mulheres, e eu sentia-me sempre sábia, sempre capaz, sabia sempre o que dizer e quando, e a confiança dela em mim validava-me e ia-me permitindo novas vitórias.
Ele, sendo mais velho, relembrava-me constantemente (na maioria das vezes até inconscientemente, parece-me) da minha incompetência, desafiando-me, explorando as minhas fraquezas e desconstruíndo as minhas certezas, fazendo-me sentir excluída, obrigando-me a procurar novos lugares, novas brechas de entendimento e aceitação. Relativizava as minhas lágrimas, mas também os meus sorrisos, e perguntava-me sempre "porquê?".
Hoje, alguns anos depois, perdi quase completamente o contacto com estas duas pessoas, mas penso que elas são também um pouco daquilo que eu sou hoje, com as minhas competências e incompetências, e ainda bem que assim é: quero sempre saber e desconhecer, (des)construir e ser (des)construída, porque a vida é longa demais para passarmos por ela pensando, ou que já sabemos tudo, ou que nunca vamos conseguir nada...
Hoje, alguns anos depois, tenho na minha vida uma pessoa que concilia, na sua relação comigo, estes dois aspectos, e penso que essa é uma das chaves para que possamos continuar juntos, face às mais diversas vicissitudes: não tenho a ilusão de dizer que me completa, ou que é a minha outra metade, porque isso é sempre redutor. Posso apenas dizer que me faz sentir válida e inútil, e tem o entendimento necessário para me provocar estes sentimentos na altura certa, sem eu perceber muito bem como, e de me dizer, muitas vezes sem palavras, que já sou, mas posso ainda vir a ser muito mais. E não será isso também o amor...?


segunda-feira, 8 de maio de 2006

Mapas

Mapa de mim, para que me saibas,
Me vejas nas brumas do que sou,
Me desvendes nas solidões e nas lágrimas.

Mapa de mim, para que me alcances,
Me toques no corpo e na alma,
Me beijes as feridas de ti.

Mapa de mim, para que me ouças,
Me sintas o coração gritar,
Me percebas num sopro de adeus.

sábado, 6 de maio de 2006

Sobre os nomes das coisas

Há algum tempo atrás dediquei-me a um diálogo sobre a importância dos nomes das coisas. Será que a identidade das pessoas, dos objectos, dos fenómenos se altera conforme a designação oral/escrita que lhes atribuímos e se torna mais ou menos socialmente aceite?
Seria eu outra pessoa se me tivessem dado outro nome? Fará sentido falar-se sobre o significado dos nomes?
O que são as coisas sem os nomes? Existirão realidades onde as palavras não façam sentido e as coisas se valham por si mesmas?
Enfim... Penso muito sobre isto e, quanto mais penso, mais acho que as coisas também são os seus nomes. Quantos e quantas de nós não terão já dado por si a verem-se retratados/as num estudo sobre o significado do seu nome? Quem conseguirá ainda projectar na sua mente um qualquer objecto/fenómeno/pessoa sem lhe associar imediatamente determinada designação e não outra?
Fará sentido achar que atribuir a determinada realidade uma outra designação altera a sua essência? Penso que esta reflexão faz especialmente sentido quando se fala daquilo que comumente se designa "masculino universal neutro".
Fará sentido abordar os elementos de uma turma como "os alunos" quando estamos perante uma plateia composta em 90% por mulheres? Fará sentido utilizar designações como "os sociólogos", "os psicólogos" e outras que tais, quando está mais do que provado que a população estudantil e profissional na área das Ciências Sociais e Humanas é maioritariamente (uma maioria ampla...) composta por mulheres?
Quem designou que o masculino seria "universal" e "neutro"? Haverá alguma neutralidade nesta decisão, como em tantas outras escolhas?...

sexta-feira, 5 de maio de 2006

O princípio

Narrativa do Corpo
O que serás de mim? Princípio, meio ou fim?
Parte, parto, porto.
Lunar, solar, tu, eu, nós em mim?
Somos duas, somos soma, mais que nós.
Corpo partido, somado e dividido, tantas vezes um, tantas vezes dois... quantas vezes eu?
Corpo parido, parado, sofrido, salgado e sumido, vincado de mim.
Escondo-me de ti, escondo-te em mim,
Não te sinto, não te sei; não te quis e não te amei.
Onde vamos? Para quem és?
O que serás de mim? Princípio, meio ou fim?