sexta-feira, 17 de novembro de 2006

Conquistas da Vida Adulta, ou a Descoberta do Mérito Próprio

Tenho 22 anos e ainda não saí "debaixo da asa" dos meus pais. Está certo que já não moro em casa deles desde Setembro de 2002, e que, neste momento, vivo a cerca de 300 km de distância da casa-mãe, mas, tecnicamente (digamos, no que ao aspecto financeiro da questão diz respeito), eles sustentam-me. É verdade, assumo: tenho 22 anos e vivo à custa dos meus pais. Com a minha idade, a minha mãe estava a iniciar a sua vida profissional (concluído o curso superior) e o meu pai, enfim, tinha deixado de estudar no 6.º ano, já há muito que se sustentava a ele próprio. Namoravam e casariam daí a um ano. Com a minha idade, a minha avó já era casada e mãe da minha mãe. E eu aqui estou. Por vezes sinto-me um pouco condenada à condição perpétua de estudante, e agora que estou quase a acabar a Licenciatura (no início do quinto e último ano de percurso), imagino cada vez mais que nunca vou poder realmente deixar os bancos da Faculdade, seja por causa da progressiva desvalorização dos graus académicos (é quase como se estivéssemos sempre a correr dois passos atrás das decisões políticas...), seja porque me sinto cada vez mais a cumprir o meu destino, e sinto que é esta a minha casa. Quem dera.
Por vezes, esta condição angustia-me. O corpo pede-me mais, a cabeça pede-me mais, a vida pede-me mais. Daqui a 20 anos, possivelmente, terei saudades destes dias-como-tardes-preguiçosas-de-Verão, mas hoje vivo na falta do que (ainda) não tenho. E no sobressalto de não ter tempo de o ter. Principalmente desde que o meu avô morreu, esta coisa do tempo (ou da falta dele) ocupa o meu pensamento desde que me levanto até que me deito, e dou por mim, muitas vezes, a pensar "Que horror, nunca vou ter tempo para fazer isto ou aquilo". E tenho 22 anos.
Pesem embora as aflições financeiras e crono-biológicas, a vida adulta trouxe-me outras descobertas menos penosas, como seja o mérito próprio. Quando era criança, e como muitas crianças da minha idade (principalmente aquelas que teriam, pela primeira vez na história das suas famílias, verdadeiras oportunidades de sucesso académico), a minha vida era mais aquilo que se passava na escola do que fora dela, e os meus méritos eram esses, aqueles que vinham sob a forma de "bons" e "muito bons" e muitos certos redondinhos desenhados a vermelho no caderno diário. Mas as minhas conquistas eram mais importantes para aqueles/as que as viviam comigo, principalmente os meus pais, e até eles as viviam de forma distinta entre si: para a minha mãe, era sempre bom, mesmo quando era mau; para o meu pai, era sempre mau, mesmo quando era bom. É a diferença entre viver para os/as filhos/as ou viver através dos/as filhos/as, entre sabermos que temos algo para lhes dar ou só querermos que eles/as sejam melhores do que nós fomos.
Entretanto, e alguns anos depois, a verdade é que continuo na escola, e os meus méritos continuam a ser maioritariamente académicos, mas já de outra natureza, e nesse aspecto penso que tive sorte. Estou num curso que me ensinou a "des-pensar": entrei para lá a pensar que sabia tudo, e agora, saio de lá a saber de facto algumas coisas e a ter a certeza de que a maior parte do que "sabia" quando para lá entrei...era basicamente lixo intelectual e ideias feitas. Se este não é o mérito do Ensino Superior, o de ensinar os/as seus/suas alunos/as a nunca deixarem de pensar, mesmo sobre aquilo que assumem como certo, não sei qual será...
E hoje, aquilo que tenho de que me orgulho é meu, fui eu que conquistei, para mim. Onde circulo, não sou "filha de cicrano/a" ou "conhecida de beltrano/a", recolho os frutos do meu próprio trabalho, e através dele construo os meus sucessos e insucessos, presentes e futuros. Já não quero ser boa naquilo que faço para fazer alguém feliz, é a mim que faço sorrir ou chorar, é a mim que ultrapasso ou desiludo, e gosto disso. Não quero ser melhor que ninguém, a minha expectativa é apenas a de, todas as noites, deitar a cabeça na almofada e pensar "Dei o meu melhor". É a minha luta, e é por mim.

quarta-feira, 8 de novembro de 2006

Raparigas Alpha (Focus 367/2006)


Num artigo sem assinatura, antecedido pelo artigo comentado anteriormente, fala-se de "Raparigas Alpha. As novas gerações de mulheres deixaram de lado as questões do feminismo; pelo menos como o conhecíamos". Começa por se dizer: "As mulheres jovens de hoje não vêem os homens como inimigos, possuem sucesso no campo profissional e não negam gostar de ter uma vida familiar equilibrada. Assim sendo, talvez tenhamos de concluir que o movimento feminista, tal como foi desenhado pelas militantes da década de 60, está um tanto ou quanto moribundo". A partir da leitura deste pequeno excerto, ficamos a saber pelo menos duas coisas: a primeira é que "o movimento feminista, tal como foi desenhado pelas militantes da década de 60" tinha inerentes as ideias de que os homens são inimigos das mulheres, de que as mulheres não possuem/não podem possuir sucesso no campo profissional e de que não é aceitável que uma mulher afirme que gosta de ter uma vida familiar equilibrada; a segunda é que o feminismo só tem/teve militantes do sexo feminino. O erro deste artigo, como aliás do anterior, é a sua tendência para o unitarismo: "as mulheres antigamente eram todas assim", "as mulheres hoje em dia são todas assado". Ao contrário do que os/as autores/as e editores/as desta revista possam pensar, há mais a dizer sobre o "movimento feminista" do que meia dúzia de frases feitas, do género "queimaram sutiãs". O "movimento feminista" não é uno nem único, existiram e existem vários movimentos feministas ao longo da história da humanidade, organizando-se e actuando em diferentes frentes de luta e em diferentes formas, tendo como consequência uma diversidade de vertentes que variaram ao longo da história e do contexto social: por meio da igualdade, da diferença e da separação, há porém, no feminismo, um compromisso comum, o de pôr fim à opressão e subordinação das mulheres e à estrutura patriarcal presente em vários níveis da sociedade. As diferenças situam-se na forma como pensam sobre as mulheres, no adversário, quais os focos de luta, bem como as metas que querem alcançar; as divergências vão da análise das raízes do patriarcalismo, à possibilidade de combater, de reformar o estado patriarcal e/ou capitalismo patriarcal, à heterossexualidade patriarcal ou ainda à dominação cultural.
Podemos, nomeadamente, salientar o movimento feminista liberal/socialista (defende as mulheres como seres humanos e sociais e toma como adversário o Estado patriarcal e/ou o capitalismo patriarcal, tendo como meta a obtenção de direitos iguais, inclusive o direito de ter filhos ou não), o movimento feminista radical (que identificava nos homens os agentes da opressão, tomando as outras formas de opressão como extensão da supremacia masculina), o movimento feminista cultural (que se focaliza na comunidade feminina, que tem como adversários as instituições e os valores patriarcais, tendo como meta a autonomia cultural das mulheres), o movimento feminista essencialista (que defende a existência de uma essência única feminina e tem como adversário o modo masculino de ser, e como meta a liberdade matriarcal) e o movimento feminista pragmático (que se constrói por referência à luta pelos direitos das donas de casa e mulheres exploradas/agredidas e tem como adversário o capitalismo patriarcal e como meta a sobrevivência/dignidade das mulheres). Por exemplo, porque muitas outras orientações/vertentes da luta pelos direitos das mulheres existem/existiram/existirão. Para além disso, o movimento feminista relaciona-se com outros movimentos sociais na medida em que as questões ligadas à condição da mulher acabam por se interligar com questões de opressão de classe, étnica e sexual. Em alguns momentos da história, essa abertura do movimento feminista a outras lutas não existe, principalmente pela necessidade de uma auto-afirmação das mulheres enquanto grupo organizado e autónomo. Porém, com as gerações que se seguem, novas condições vão surgindo, abrindo novas possibilidades de organização e de solidariedade entre movimentos de focos diferentes. Sobreposições de opressões que se personificam, por exemplo, na mulher negra, na mulher lésbica, na mulher pobre, incentivam não só as frentes específicas dentro do feminismo, mas coloca-o ao lado de outros movimentos que se colocam igualmente contra qualquer tipo de discriminação.

No parágrafo seguinte do artigo, diz-se: "Desde tenra idade as raparigas têm vindo a afirmar-se, sem dramas ou problemas, nem olhando para o que alcançam como uma vitória sobre os rapazes. As novas gerações reivindicam a diferença positiva de género, pois olham para a igualdade de direitos, liberdades e garantias, um assunto já resolvido. Querem ter poder, para poder fazer". Isto, sinceramente, parece-me de quem cospe no prato de onde come. Porque parece que, um dia, de repente, nasceu uma nova geração de mulheres, sem antecedentes nem influência do contexto sócio-histórico em que elas, as suas mães e as suas avós nasceram, que simplesmente já não teve/tem de lutar pelos seus direitos. Já é tudo tão bom, maravilhoso, equilibrado, igualitário, e já temos tudo o que queríamos, para quê lutar mais? E lutar por quê?
No entanto, as estatísticas dizem-nos:

. As mulheres detêm apenas 1% da riqueza mundial, e ganham 10% das receitas mundiais, apesar de constituírem 49% da população;

. Quando se considera a criação dos filhos e o trabalho doméstico, as mulheres trabalham mais do que os homens, quer no mundo industrializado, quer no mundo subdesenvolvido (20% mais no mundo industrializado, 30% mais no resto do mundo);

. As mulheres estão sub-representadas em todos os corpos legislativos mundiais. Em 1985 a Finlândia detinha a maior percentagem de mulheres na legislatura nacional, com aproximadamente 32%. Actualmente, a Suécia tem o maior número, com 42%. A média mundial é de apenas 9%;

. Em média, mundialmente, as mulheres ganham 30% menos do que os homens, mesmo quando têm o mesmo emprego.

Parece realmente que isto da luta pelos direitos das mulheres, isto do "feminismo", já é mais ou menos obsoleto, não é?
No sexto parágrafo deste artigo ficamos a conhecer a Sra. Diana Mendonça, que "trabalhou como jornalista e aos 23 anos era directora de um [sic] revista de culinária. Chega à escrita pela porta da cozinha, bem longe do comportamento das militantes do feminismo que queimaram os tachos no Parque Eduardo Sétimo, em Lisboa". Em primeiro lugar, acho que essa do "chegar pela porta da cozinha" é claramente de um machismo acéfalo e asqueroso, e nem sequer sei se quem escreveu este artigo foi um homem ou uma mulher. Em segundo lugar, parece que exercer o cargo de directora de uma revista de culinária é de facto equivalente a ser obrigada a abdicar de uma carreira profissional em prol do desempenho de tarefas domésticas e do cuidado ao marido e aos/às filhos/as, porque era contra essa vida reduzida que lutavam as mulheres que "queimaram os tachos no Parque Eduardo Sétimo". A Sra. Diana Mendonça chegou ao cargo de directora de uma revista de culinária, como poderia ter chegado ao cargo de directora de outro tipo de entidade/instituição qualquer; as mulheres que "queimaram os tachos" tinham pouca ou nenhuma escolaridade e poucas ou nenhumas perspectivas de vida, que fossem além de parir, lavar, cozinhar e obedecer/depender, primeiro dos pais e depois dos maridos.
Na última página do artigo diz-se "As raparigas de hoje são femininas, sem ser feministas, e entram em campos laborais antes reservados exclusivamente aos homens, sem sentirem necessidades de se afirmarem superiores. Longe vai o ano de 1975, o primeiro em que se realizaram no nosso país eleições livres universais". A partir da leitura deste excerto, podemos perceber duas coisas: a primeira é que ser feminista é ser ultra-feminina (podemos então pensar que as feministas são mulheres que "transbordam" feminilidade); a segunda é que o facto de "as raparigas de hoje" serem "femininas, sem ser feministas" tem alguma relação com a questão do sufrágio universal, mas confesso que o meu raciocínio não consegue discernir a lógica de encadeamento que assiste a este texto.
Como enquadramento ao contributo da última entrevista, diz-se "As mulheres da nova geração não abdicam de participar em todas as áreas da vida em sociedade e ao mesmo tempo conseguir manter um equilíbrio com a vida familiar. Joana Amaral Dias tem 33 anos, um filho e uma intensa actividade laboral". Por muito respeito profissional, político e intelectual que eu tenha (e tenho) pela Dra. Joana Amaral Dias, penso que deve ter sido a escolha menos inteligente para ilustrar este tipo de afirmação. Não me parece que a Dra. Joana Amaral Dias seja o tipo de mulher que tem de “fazer das tripas coração” para conciliar a vida familiar e a vida profissional, julgo que terá, certamente, uma rede social de apoio e recursos que lhe permitam equilibrar estes dois aspectos da sua vida sem grandes malabarismos, ao contrário da esmagadora maioria das mulheres que trabalham fora de casa e são esposas e mães. Não me parece que a Dra. Joana Amaral Dias seja o tipo de mãe que tem que se levantar às 6 da manhã para adiantar algumas tarefas domésticas antes de levantar e despachar o filho, que tem de ir levar à escola de autocarro à hora de ponta, e que só voltará a ver ao fim do dia de trabalho - com sorte, se não tiver sido chamada a meio do dia de trabalho para ir levar o filho ao hospital porque partiu a cabeça no recreio, ou tiver de arranjar alguém que tome conta dele (ou ela mesma perder o resto do dia de trabalho) porque a criança ficou doente e não pode ficar na escola - quando chega a casa depois de ir buscar o filho à escola, o marido ou companheiro ao trabalho e ir fazer as compras do mês ao supermercado. Também não me parece que seja o tipo de pessoa que passa o fim-de-semana a pôr em dia a limpeza que não teve tempo de fazer durante a semana, ou a passar 10 kg de roupa a ferro, em vez de ir passear ao jardim ou visitar um museu. Isto sim, parece-me a luta diária de uma mulher pelos seus direitos, porque nem só de queimar sutiãs e tachos e odiar os homens se faz o feminismo. Como, aliás, diz a Dra. Joana Amaral Dias: "Há quem pense que o feminismo é coisa do passado ou um ataque aos homens. Ser feminista é defender a igualdade de direitos e práticas sociais entre géneros, algo que, embora tenha evoluído francamente, está ainda longe de atingir o pleno. O feminismo mudou, evidentemente, mais continua a ser necessário e a fazer sentido". Aquilo que eu gostaria de saber é se a Dra. Joana Amaral Dias tem consciência de que esta sua frase, inteligente, complexa e esclarecida, surge a coroar um artigo infantil, desinformado e alvo de investimento zero por parte dos/as seus/suas autores/as.

Em conclusão a estes dois artigos, e em conformidade com uma referência apresentada na capa da revista, apresenta-se um teste com o título “Você é uma mulher Alpha? Neste teste, procura avaliar-se a auto-estima e, assim, deduzir com que autonomia a leitora encara o seu papel de mulher. Será que você tem espírito de mulher emancipada?”. Tendo em conta que o título da secção anterior do artigo era “Raparigas Alpha”, e se fazia referência, nele, a mulheres com sucesso profissional que equilibram o investimento na vida familiar, pareceu-me coerente a introdução que se faz a este teste. No entanto, e tendo lido inicialmente, antes de ler as questões apresentadas, a caixa de texto onde se explica como fazer o cálculo dos resultados e se faz a interpretação dos resultados obtidos, confesso que fiquei chocada. Diz-se: “Some um ponto por cada resposta a) e cinco pontos por cada resposta e). Nas perguntas 7 e 9, inverta: some um ponto por cada resposta e) e cinco por cada resposta a)”, sendo que, quantos mais pontos se obtiver, mais próximo se está de ser uma “mulher Alpha”, ou seja, de obter a interpretação que diz “O mundo já não lhe mete medo. Isso você já sabe. Ou teve de fazer-se à vida, passou por um período lixado, mas ergueu a cabeça, ou os seus pais fizeram um bom trabalho. A si, cabe-lhe a tarefa (duríssima) de passar a palavra de que mulher e homem são faces diferentes da mesma moeda. Se existissem mais pessoas assim, o mundo não seria tão desigual. Mas cuidado, às vezes a segurança em demasia transforma-se em assertividade e arrogância”. Ora, da última vez que eu vi, “assertividade” não era sinónimo de “arrogância”, era uma virtude e não um defeito, ou seja, a capacidade de alegar, propor, defender um ponto de vista, expor um argumento. Mas, claro, falando-se de mulheres, é o que nos parece querer dizer este teste, quanto mais dissermos “sim senhor” melhor vistas somos.
Posto isto, passei para o questionário em si, verificando que eram apresentadas dez questões, às quais devíamos responder uma de cinco hipóteses: “a) Nem pensar nisso; b) Bem, é verdade, que hei-de faz; c) Às vezes, às vezes; d) Concordo ou e) É isso mesmo”, tendo em conta que cada resposta a) vale cinco pontos e cada resposta e) vale um ponto, invertendo-se a regra nas perguntas 7 e 9. Assim, e analisando o inquérito (como poderão fazer ampliando a imagem), chegamos à conclusão que obtemos mais pontos se respondermos “a) Nem pensar nisso” às questões 1, 2, 3, 4, 5, 6, 8 e 10 e “e) É isso mesmo” às questões 7 e 9. Ao darmos este tipo de resposta, estamos então a afirmar (respondendo “É isso mesmo”) que:

. “As pessoas à minha volta têm mais sucesso do que eu”;

. “Ser como sou e mostrá-lo é meio caminho para não gostarem de mim”;

. “Temo que os amigos me rejeitem”;

. “Se não consigo fazer o que os outros fazem, quer dizer que os outros são melhores”;

. “Se desaparecesse da face da Terra, ninguém dava por isso”;

. “Não vou fazer barulho por coisas insignificantes”;

. “Nunca serei capaz de atingir aquilo que esperam de mim”.

É isto uma “mulher alpha”? Explicaram às entrevistadas que contactaram para a elaboração do artigo que era sob esta designação e sob este conjunto de características que as enquadravam enquanto mulheres?
Se alguém quiser dar-se ao trabalho de ler o resto do teste, nomeadamente as restantes interpretações de resultados, irá certamente encontrar pérolas de investigação jornalística séria (como, por exemplo, a afirmação “Não são bichos, esses psicólogos, são médicos e há mais de cem anos que estudam esta coisa da depressão, da falta de força (…). Você vale mais do que julga. E quem acha o contrário é burro”), e talvez me possa ajudar a compreender o que é que passou pela cabeça desta gente quando se lembrou de publicar este artigo…

P.S.: Quem quiser ver este meu artigo de opinião não publicado na Focus da próxima semana, faça o favor de comprar a revista, visto que eu vou enviá-lo para lá.


O que sobrou do feminismo (Focus 367/2006)

Há cerca de duas semanas, vinha eu da Junta, quando, ao passar por uma tabacaria, a capa da revista Focus me chamou a atenção. "O que sobrou do feminismo", a imagem de uma mulher vestida (presume-se) de executiva, de tailleur cinzento de calças, sentada numa cadeira de escritório, pasta pousada ao lado da cadeira, sentada muito direita a encarar a objectiva e dar de mamar a um bebé (sublinhe-se, despido). Na capa podia ler-se ainda: "As mulheres modernas já não queimam sutiãs. Conhecem os seus direitos e recusam-se a ser, apenas, esposas e mães". Confesso, e sem sarcasmo, que foi com apetite que comprei a revista; não sei muito bem o que é que esperava ler no artigo, talvez se tivesse olhado duas vezes para a capa, e pensado sobre aquilo que diziam, não a tivesse comprado, mas ainda bem que o fiz. Não costumo comprar a Focus, antes desta tinha comprado apenas uma, e já na altura, lembro-me, fiquei surpreendida por o artigo que faz a capa da revista se encontrar nas últimas páginas da revista, ou seja, é o último artigo, depois até das cartas de opinião dos/as leitores/as. Quanto a mim, e não percebo nada de marketing de imprensa, parece-me uma escolha pouco inteligente. E, mais uma vez, confirmou-se: numa revista de 130 páginas, o artigo que faz a capa estende-se da página 122 à página 129 (fica apenas a uma página do fim, sendo esta última página dedicada a notícias fictícias em jeito de comic relief).
Já um bocadinho farta de folhear a revista, e pensar que se tinham enganado e esquecido de incluir no corpo da revista o artigo que faz a capa, cheguei finalmente ao que me tinha levado a comprar a revista. E, novamente, em título, se perguntava: "O que resta do feminismo. Nos anos 60 queimaram os sutiãs. Agora usam wonderbra. A vida das mulheres mudou; mas será que mudou assim tanto?", e novamente surge a imagem da "executiva", desta vez falando ao telemóvel, de pé, e o bebé surge dentro da pasta que ela transporta agora a tiracolo. Confesso que achei curiosa a escolha da manequim para esta sessão fotográfica: está com um ar tão infeliz, e um olhar tão fixo, uma sugestão de olheiras debaixo dos olhos sem expressão, será que passou a noite acordada por causa das cólicas do bebé?...
O artigo começa com um excerto de uma entrevista à Dra. Maria Filomena Mónica, que afirma: "É possível a uma mulher dizer 'não limpo o pó, não aspiro, não vou ao supermercado, não faço nada'. Mas é muito difícil a uma mãe dizer 'eu não dou biberão ao meu filho, dás tu'. Eu acho que o último reduto da luta das mulheres estabelece-se no tratamento dos filhos". Ao ler isto, penso que gostaria de chegar à idade da Dra. Maria Filomena Mónica e ter tanta certeza daquilo que digo e penso, porque ela tem, ou aparenta ter, a certeza de que as mulheres não sabem não amar os filhos. Será isto verdade? Será que todas as mulheres do mundo amam incondicionalmente os filhos, nunca os rejeitam, nunca desejam não os ter tido, nunca os negligenciam? E os homens? Aparentemente, diz a Dra. Maria Filomena Mónica, aos homens, pais, é possível, eu diria mesmo, à luz do que se afirma, natural dizer "não cuido do meu filho". Será isto verdade? Será esta a complementaridade dos papéis do homem e da mulher enquanto pai e mãe? A mãe cuida e o pai descuida, e a isso são obrigados/as, por alguma espécie de natureza inerente ao género?
Depois deste excerto, a Sra. Jornalista Paula Maria Simões começa o seu contributo enquanto autora deste artigo, afirmando: "Desde o tempo em que começaram as reivindicações das mulheres por direitos iguais aos homens, na década de 60, a situação melhorou em grande parte dos casos (...)". Foi aqui que eu finalmente percebi do que trata este artigo. Não se trata de descobrir "o que resta do feminismo", mas sim de dizer "o que resta do que eu sei sobre o feminismo", e percebe-se que a Sra. Jornalista Paula Maria Simões, ocupada que esteve em transcrever entrevistas (tem excertos de quatro entrevistas num artigo de treze parágrafos), se esqueceu de procurar informações sobre o tema que fossem um pouco para além daquilo que ela julgava saber sobre o movimento feminista. Qualquer visita menos atenta ao um pólo de agregação de informação tão democrático como a Wikipédia ter-lhe-ia permitido descobrir que, antes dos sutiãs queimados de que ela tanto gosta de falar (duas referências, e ainda antes de se entrar no corpo do artigo), por exemplo, se celebra o dia 8 de Março como Dia Internacional da Mulher (dia comemorativo para a celebração dos feitos económicos, políticos e sociais alcançados pela mulher) em memória do incêndio na fábrica da Triangle Shirtwaist (Nova Iorque, 1911) em que 140 mulheres perderam a vida. Ou que, por exemplo, o movimento pelo sufrágio feminino (que é como quem diz, pelo direito das mulheres a votarem) teve início em 1897, com a fundação da União Nacional pelo Sufrágio Feminino por Millicent Fawcett (1847-1929), uma educadora britânica. O movimento feminino ganhou, então, as ruas e as suas activistas passaram então a ser conhecidas pela sociedade em geral pelo (à época, ofensivo) epíteto de sufragistas, sobretudo aquelas vinculadas à União Social e Política das Mulheres (Women's Social and Political Union - WSPU) movimento que pretendeu revelar o sexismo institucional na sociedade britânica, fundado por Emmeline Pankhurst (1858-1928). Após ser presa repetidas vezes com base na lei "Cat and Mouse", por infrações triviais, inspirou membros do grupo a fazer greves de fome. Ao serem alimentadas à força e ficarem doentes, chamaram a atenção para a brutalidade do sistema legal na época e também divulgaram sua causa. Ela foi uma militante que imprimiu um estilo mais enérgico ao movimento, o qual culminou com situações de confronto entre sufragistas e policiais e, finalmente, com a morte de uma manifestante, Emily Wilding Davison (1872-1913), que se atirou à frente do cavalo do rei da Inglaterra no célebre Derby de 1913, tornando-se a primeira mártir do movimento. E embora o sufrágio universal seja já uma realidade maioritária em quase todo o mundo, em países como o Kuwait, por exemplo, há ainda movimentos que reproduzem as mesmas lutas das sufragistas do século XIX, na tentativa de forçar o governo daquele país a mudar a sua legislação eleitoral e adoptar o voto universal em pleno século XXI. Pois é. Parece que ainda há países em que as mulheres não têm direito a votar. E parece que muitas mulheres morreram, não há muitas décadas atrás, na defesa de direitos aparentemente tão fundamentais como o direito ao trabalho e o direito ao voto. E parece, em suma, que antes dos sutiãs na década de 60, já se fazia qualquer coisinha pelos direitos das mulheres. E quanto a essa história dos sutiãs queimados, diz-se que é um mito, como tantos outros, criado por homens para ridicularizar as lutas das mulheres pelos seus direitos, mas disso eu suponho que a Sra. Jornalista Paula Maria Simões nunca tenha ouvido falar. Já a Dra. Maria Filomena Mónica afirma "Acho que os movimentos de mulheres contribuíram para a emancipação. A única coisa que eu critico é que às vezes exageraram. Era ridículo queimarem sutiãs na praça pública. (...) Elas podiam vingar-se: durante um século, os homens deviam fazer de mulheres para ver o que custava a vida". Estou a citar, juro, não estou a inventar. Esta senhora diz que os movimentos feministas eram, por vezes, exagerados e ridículos, e que uma via muito mais plausível de luta feminista seria a de obrigar os homens a "fazerem de" (seja lá o que for que isto signifique) mulheres durante um século.
Mais à frente no artigo, apresenta-se um excerto de uma entrevista à Sra. "Ana Helena, de 40 anos, tem três filhas", que, diz-se: "Nunca sentiu discriminação no mercado do trabalho. 'Mas sabemos que isso existe, não é? É muito difícil conciliar vida familiar com o trabalho por questões de tempo.' (...) Mas para ela existe sempre uma jornada de trabalho dupla. 'Vou buscar o meu marido à estação (...). E tenho até às nove e meia para gerir tudo. Dar atenção às miúdas, arrumar a casa, preparar o dia seguinte, pô-las na cama. É um desgaste enorme'." Mais à frente, numa secção do artigo intitulada "Raparigas Alpha", Raquel, que "acabou de entrar no curso de Farmácia (...) com uma média final de secundário de 17,7 (...) admite que é obcecada por cinema e que sai imenso com as amigas, estando a anos-luz de ser 'ratinho de biblioteca'", afirma: "Não é para me gabar, mas no geral os rapazes com quem estudei eram piores alunos do que eu (...). Acho que as raparigas são mais maduras e dedicadas ao futuro. Em geral trabalhamos mais para atingir os nossos objectivos". Embora estas duas entrevistas possam, à primeira vista, ter pouco a ver uma com a outra, parece-me importante perceber que a noção que estas mulheres têm da "discriminação" é, digamos, curiosa: discriminação, para elas, parece ser ter alguém a barrar-lhes fisicamente a entrada da escola ou do local de trabalho dizendo-lhes, abertamente, "Não entras porque és mulher". Ou, caso tenham possibilidade de entrar, serem obrigadas a andar a lavar sanitas ou chãos, enquanto que homens com as mesmas habilitações podem desenvolver trabalho a sério, ou então serem obrigadas a estudar ao frio e à chuva, a escrever em quadros de ardósia, sem livros, sem material. Isto sim, deve ser discriminação. Porque trabalhar, em média, mais duas horas por dia (nomeadamente no desempenho de tarefas domésticas), para além da jornada de trabalho, que os homens, não deve ser discriminação. Porque, quando somos pequenas, oferecerem-nos bonecas e louça de brincar, enquanto que aos rapazes oferecem bolas e jogos, não deve ser discriminação. Os rapazes brincam a ser astronautas, cowboys, super-heróis, soldados. As meninas brincam a ser mães e donas de casa, com alguma imaginação professoras ou princesas à espera do príncipe ecantado. E isto não é discriminação, é a nossa essência enquanto mulheres, aparentemente. "Em geral trabalhamos mais para atingir os nossos objectivos", mas isto não é discriminação. As mulheres têm de ser sempre melhores que os homens para serem colocadas ao mesmo nível, mas isto não é discriminação. Desde que partilhem os brinquedos, mesmo que os brinquedos continuem a ser deles, não estamos a ser discriminadas, ou pelo menos assim se pode depreender do que se diz neste artigo.
O artigo termina com esta afirmação da parte da Sra. Jornalista Paula Maria Simões: "Apesar dos pesares, de ainda ganharem menos do que os homens, de terem de se submeter ao aborto ilegal, e da desequilibrada divisão de tarefas, da agenda das mulheres actuais passaram a constar já outras questões". Assim mesmo. Aparentemente, as questões da desigualdade salarial, do direito ao aborto livre e da partilha de tarefas domésticas são já questões, se não ultrapassadas, em vias de se ultrapassarem, porque, de facto, as "mulheres actuais" já não têm de se preocupar com tais questões menores. São "pesares", como diz a Sra. Jornalista Paula Maria Simões, mas a vida não acaba aí. Acho curioso como é que uma revista que se diz "semanário de grande informação" trata deste tipo de problemáticas com a mesma leveza, ou com a mesma importância que atribui à relevância da relação entre a Jornalista Fernanda Câncio e o Primeiro-Ministro José Sócrates para a agenda política do Governo. Isso leva-nos a pensar: será que se o Primeiro-Ministro namorasse com a Dra. Maria Filomena Mónica, seria aprovada uma lei que obrigasse os homens a "fazerem de" mulheres durante um século?