quarta-feira, 8 de novembro de 2006

Raparigas Alpha (Focus 367/2006)


Num artigo sem assinatura, antecedido pelo artigo comentado anteriormente, fala-se de "Raparigas Alpha. As novas gerações de mulheres deixaram de lado as questões do feminismo; pelo menos como o conhecíamos". Começa por se dizer: "As mulheres jovens de hoje não vêem os homens como inimigos, possuem sucesso no campo profissional e não negam gostar de ter uma vida familiar equilibrada. Assim sendo, talvez tenhamos de concluir que o movimento feminista, tal como foi desenhado pelas militantes da década de 60, está um tanto ou quanto moribundo". A partir da leitura deste pequeno excerto, ficamos a saber pelo menos duas coisas: a primeira é que "o movimento feminista, tal como foi desenhado pelas militantes da década de 60" tinha inerentes as ideias de que os homens são inimigos das mulheres, de que as mulheres não possuem/não podem possuir sucesso no campo profissional e de que não é aceitável que uma mulher afirme que gosta de ter uma vida familiar equilibrada; a segunda é que o feminismo só tem/teve militantes do sexo feminino. O erro deste artigo, como aliás do anterior, é a sua tendência para o unitarismo: "as mulheres antigamente eram todas assim", "as mulheres hoje em dia são todas assado". Ao contrário do que os/as autores/as e editores/as desta revista possam pensar, há mais a dizer sobre o "movimento feminista" do que meia dúzia de frases feitas, do género "queimaram sutiãs". O "movimento feminista" não é uno nem único, existiram e existem vários movimentos feministas ao longo da história da humanidade, organizando-se e actuando em diferentes frentes de luta e em diferentes formas, tendo como consequência uma diversidade de vertentes que variaram ao longo da história e do contexto social: por meio da igualdade, da diferença e da separação, há porém, no feminismo, um compromisso comum, o de pôr fim à opressão e subordinação das mulheres e à estrutura patriarcal presente em vários níveis da sociedade. As diferenças situam-se na forma como pensam sobre as mulheres, no adversário, quais os focos de luta, bem como as metas que querem alcançar; as divergências vão da análise das raízes do patriarcalismo, à possibilidade de combater, de reformar o estado patriarcal e/ou capitalismo patriarcal, à heterossexualidade patriarcal ou ainda à dominação cultural.
Podemos, nomeadamente, salientar o movimento feminista liberal/socialista (defende as mulheres como seres humanos e sociais e toma como adversário o Estado patriarcal e/ou o capitalismo patriarcal, tendo como meta a obtenção de direitos iguais, inclusive o direito de ter filhos ou não), o movimento feminista radical (que identificava nos homens os agentes da opressão, tomando as outras formas de opressão como extensão da supremacia masculina), o movimento feminista cultural (que se focaliza na comunidade feminina, que tem como adversários as instituições e os valores patriarcais, tendo como meta a autonomia cultural das mulheres), o movimento feminista essencialista (que defende a existência de uma essência única feminina e tem como adversário o modo masculino de ser, e como meta a liberdade matriarcal) e o movimento feminista pragmático (que se constrói por referência à luta pelos direitos das donas de casa e mulheres exploradas/agredidas e tem como adversário o capitalismo patriarcal e como meta a sobrevivência/dignidade das mulheres). Por exemplo, porque muitas outras orientações/vertentes da luta pelos direitos das mulheres existem/existiram/existirão. Para além disso, o movimento feminista relaciona-se com outros movimentos sociais na medida em que as questões ligadas à condição da mulher acabam por se interligar com questões de opressão de classe, étnica e sexual. Em alguns momentos da história, essa abertura do movimento feminista a outras lutas não existe, principalmente pela necessidade de uma auto-afirmação das mulheres enquanto grupo organizado e autónomo. Porém, com as gerações que se seguem, novas condições vão surgindo, abrindo novas possibilidades de organização e de solidariedade entre movimentos de focos diferentes. Sobreposições de opressões que se personificam, por exemplo, na mulher negra, na mulher lésbica, na mulher pobre, incentivam não só as frentes específicas dentro do feminismo, mas coloca-o ao lado de outros movimentos que se colocam igualmente contra qualquer tipo de discriminação.

No parágrafo seguinte do artigo, diz-se: "Desde tenra idade as raparigas têm vindo a afirmar-se, sem dramas ou problemas, nem olhando para o que alcançam como uma vitória sobre os rapazes. As novas gerações reivindicam a diferença positiva de género, pois olham para a igualdade de direitos, liberdades e garantias, um assunto já resolvido. Querem ter poder, para poder fazer". Isto, sinceramente, parece-me de quem cospe no prato de onde come. Porque parece que, um dia, de repente, nasceu uma nova geração de mulheres, sem antecedentes nem influência do contexto sócio-histórico em que elas, as suas mães e as suas avós nasceram, que simplesmente já não teve/tem de lutar pelos seus direitos. Já é tudo tão bom, maravilhoso, equilibrado, igualitário, e já temos tudo o que queríamos, para quê lutar mais? E lutar por quê?
No entanto, as estatísticas dizem-nos:

. As mulheres detêm apenas 1% da riqueza mundial, e ganham 10% das receitas mundiais, apesar de constituírem 49% da população;

. Quando se considera a criação dos filhos e o trabalho doméstico, as mulheres trabalham mais do que os homens, quer no mundo industrializado, quer no mundo subdesenvolvido (20% mais no mundo industrializado, 30% mais no resto do mundo);

. As mulheres estão sub-representadas em todos os corpos legislativos mundiais. Em 1985 a Finlândia detinha a maior percentagem de mulheres na legislatura nacional, com aproximadamente 32%. Actualmente, a Suécia tem o maior número, com 42%. A média mundial é de apenas 9%;

. Em média, mundialmente, as mulheres ganham 30% menos do que os homens, mesmo quando têm o mesmo emprego.

Parece realmente que isto da luta pelos direitos das mulheres, isto do "feminismo", já é mais ou menos obsoleto, não é?
No sexto parágrafo deste artigo ficamos a conhecer a Sra. Diana Mendonça, que "trabalhou como jornalista e aos 23 anos era directora de um [sic] revista de culinária. Chega à escrita pela porta da cozinha, bem longe do comportamento das militantes do feminismo que queimaram os tachos no Parque Eduardo Sétimo, em Lisboa". Em primeiro lugar, acho que essa do "chegar pela porta da cozinha" é claramente de um machismo acéfalo e asqueroso, e nem sequer sei se quem escreveu este artigo foi um homem ou uma mulher. Em segundo lugar, parece que exercer o cargo de directora de uma revista de culinária é de facto equivalente a ser obrigada a abdicar de uma carreira profissional em prol do desempenho de tarefas domésticas e do cuidado ao marido e aos/às filhos/as, porque era contra essa vida reduzida que lutavam as mulheres que "queimaram os tachos no Parque Eduardo Sétimo". A Sra. Diana Mendonça chegou ao cargo de directora de uma revista de culinária, como poderia ter chegado ao cargo de directora de outro tipo de entidade/instituição qualquer; as mulheres que "queimaram os tachos" tinham pouca ou nenhuma escolaridade e poucas ou nenhumas perspectivas de vida, que fossem além de parir, lavar, cozinhar e obedecer/depender, primeiro dos pais e depois dos maridos.
Na última página do artigo diz-se "As raparigas de hoje são femininas, sem ser feministas, e entram em campos laborais antes reservados exclusivamente aos homens, sem sentirem necessidades de se afirmarem superiores. Longe vai o ano de 1975, o primeiro em que se realizaram no nosso país eleições livres universais". A partir da leitura deste excerto, podemos perceber duas coisas: a primeira é que ser feminista é ser ultra-feminina (podemos então pensar que as feministas são mulheres que "transbordam" feminilidade); a segunda é que o facto de "as raparigas de hoje" serem "femininas, sem ser feministas" tem alguma relação com a questão do sufrágio universal, mas confesso que o meu raciocínio não consegue discernir a lógica de encadeamento que assiste a este texto.
Como enquadramento ao contributo da última entrevista, diz-se "As mulheres da nova geração não abdicam de participar em todas as áreas da vida em sociedade e ao mesmo tempo conseguir manter um equilíbrio com a vida familiar. Joana Amaral Dias tem 33 anos, um filho e uma intensa actividade laboral". Por muito respeito profissional, político e intelectual que eu tenha (e tenho) pela Dra. Joana Amaral Dias, penso que deve ter sido a escolha menos inteligente para ilustrar este tipo de afirmação. Não me parece que a Dra. Joana Amaral Dias seja o tipo de mulher que tem de “fazer das tripas coração” para conciliar a vida familiar e a vida profissional, julgo que terá, certamente, uma rede social de apoio e recursos que lhe permitam equilibrar estes dois aspectos da sua vida sem grandes malabarismos, ao contrário da esmagadora maioria das mulheres que trabalham fora de casa e são esposas e mães. Não me parece que a Dra. Joana Amaral Dias seja o tipo de mãe que tem que se levantar às 6 da manhã para adiantar algumas tarefas domésticas antes de levantar e despachar o filho, que tem de ir levar à escola de autocarro à hora de ponta, e que só voltará a ver ao fim do dia de trabalho - com sorte, se não tiver sido chamada a meio do dia de trabalho para ir levar o filho ao hospital porque partiu a cabeça no recreio, ou tiver de arranjar alguém que tome conta dele (ou ela mesma perder o resto do dia de trabalho) porque a criança ficou doente e não pode ficar na escola - quando chega a casa depois de ir buscar o filho à escola, o marido ou companheiro ao trabalho e ir fazer as compras do mês ao supermercado. Também não me parece que seja o tipo de pessoa que passa o fim-de-semana a pôr em dia a limpeza que não teve tempo de fazer durante a semana, ou a passar 10 kg de roupa a ferro, em vez de ir passear ao jardim ou visitar um museu. Isto sim, parece-me a luta diária de uma mulher pelos seus direitos, porque nem só de queimar sutiãs e tachos e odiar os homens se faz o feminismo. Como, aliás, diz a Dra. Joana Amaral Dias: "Há quem pense que o feminismo é coisa do passado ou um ataque aos homens. Ser feminista é defender a igualdade de direitos e práticas sociais entre géneros, algo que, embora tenha evoluído francamente, está ainda longe de atingir o pleno. O feminismo mudou, evidentemente, mais continua a ser necessário e a fazer sentido". Aquilo que eu gostaria de saber é se a Dra. Joana Amaral Dias tem consciência de que esta sua frase, inteligente, complexa e esclarecida, surge a coroar um artigo infantil, desinformado e alvo de investimento zero por parte dos/as seus/suas autores/as.

Em conclusão a estes dois artigos, e em conformidade com uma referência apresentada na capa da revista, apresenta-se um teste com o título “Você é uma mulher Alpha? Neste teste, procura avaliar-se a auto-estima e, assim, deduzir com que autonomia a leitora encara o seu papel de mulher. Será que você tem espírito de mulher emancipada?”. Tendo em conta que o título da secção anterior do artigo era “Raparigas Alpha”, e se fazia referência, nele, a mulheres com sucesso profissional que equilibram o investimento na vida familiar, pareceu-me coerente a introdução que se faz a este teste. No entanto, e tendo lido inicialmente, antes de ler as questões apresentadas, a caixa de texto onde se explica como fazer o cálculo dos resultados e se faz a interpretação dos resultados obtidos, confesso que fiquei chocada. Diz-se: “Some um ponto por cada resposta a) e cinco pontos por cada resposta e). Nas perguntas 7 e 9, inverta: some um ponto por cada resposta e) e cinco por cada resposta a)”, sendo que, quantos mais pontos se obtiver, mais próximo se está de ser uma “mulher Alpha”, ou seja, de obter a interpretação que diz “O mundo já não lhe mete medo. Isso você já sabe. Ou teve de fazer-se à vida, passou por um período lixado, mas ergueu a cabeça, ou os seus pais fizeram um bom trabalho. A si, cabe-lhe a tarefa (duríssima) de passar a palavra de que mulher e homem são faces diferentes da mesma moeda. Se existissem mais pessoas assim, o mundo não seria tão desigual. Mas cuidado, às vezes a segurança em demasia transforma-se em assertividade e arrogância”. Ora, da última vez que eu vi, “assertividade” não era sinónimo de “arrogância”, era uma virtude e não um defeito, ou seja, a capacidade de alegar, propor, defender um ponto de vista, expor um argumento. Mas, claro, falando-se de mulheres, é o que nos parece querer dizer este teste, quanto mais dissermos “sim senhor” melhor vistas somos.
Posto isto, passei para o questionário em si, verificando que eram apresentadas dez questões, às quais devíamos responder uma de cinco hipóteses: “a) Nem pensar nisso; b) Bem, é verdade, que hei-de faz; c) Às vezes, às vezes; d) Concordo ou e) É isso mesmo”, tendo em conta que cada resposta a) vale cinco pontos e cada resposta e) vale um ponto, invertendo-se a regra nas perguntas 7 e 9. Assim, e analisando o inquérito (como poderão fazer ampliando a imagem), chegamos à conclusão que obtemos mais pontos se respondermos “a) Nem pensar nisso” às questões 1, 2, 3, 4, 5, 6, 8 e 10 e “e) É isso mesmo” às questões 7 e 9. Ao darmos este tipo de resposta, estamos então a afirmar (respondendo “É isso mesmo”) que:

. “As pessoas à minha volta têm mais sucesso do que eu”;

. “Ser como sou e mostrá-lo é meio caminho para não gostarem de mim”;

. “Temo que os amigos me rejeitem”;

. “Se não consigo fazer o que os outros fazem, quer dizer que os outros são melhores”;

. “Se desaparecesse da face da Terra, ninguém dava por isso”;

. “Não vou fazer barulho por coisas insignificantes”;

. “Nunca serei capaz de atingir aquilo que esperam de mim”.

É isto uma “mulher alpha”? Explicaram às entrevistadas que contactaram para a elaboração do artigo que era sob esta designação e sob este conjunto de características que as enquadravam enquanto mulheres?
Se alguém quiser dar-se ao trabalho de ler o resto do teste, nomeadamente as restantes interpretações de resultados, irá certamente encontrar pérolas de investigação jornalística séria (como, por exemplo, a afirmação “Não são bichos, esses psicólogos, são médicos e há mais de cem anos que estudam esta coisa da depressão, da falta de força (…). Você vale mais do que julga. E quem acha o contrário é burro”), e talvez me possa ajudar a compreender o que é que passou pela cabeça desta gente quando se lembrou de publicar este artigo…

P.S.: Quem quiser ver este meu artigo de opinião não publicado na Focus da próxima semana, faça o favor de comprar a revista, visto que eu vou enviá-lo para lá.


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