quarta-feira, 8 de novembro de 2006

O que sobrou do feminismo (Focus 367/2006)

Há cerca de duas semanas, vinha eu da Junta, quando, ao passar por uma tabacaria, a capa da revista Focus me chamou a atenção. "O que sobrou do feminismo", a imagem de uma mulher vestida (presume-se) de executiva, de tailleur cinzento de calças, sentada numa cadeira de escritório, pasta pousada ao lado da cadeira, sentada muito direita a encarar a objectiva e dar de mamar a um bebé (sublinhe-se, despido). Na capa podia ler-se ainda: "As mulheres modernas já não queimam sutiãs. Conhecem os seus direitos e recusam-se a ser, apenas, esposas e mães". Confesso, e sem sarcasmo, que foi com apetite que comprei a revista; não sei muito bem o que é que esperava ler no artigo, talvez se tivesse olhado duas vezes para a capa, e pensado sobre aquilo que diziam, não a tivesse comprado, mas ainda bem que o fiz. Não costumo comprar a Focus, antes desta tinha comprado apenas uma, e já na altura, lembro-me, fiquei surpreendida por o artigo que faz a capa da revista se encontrar nas últimas páginas da revista, ou seja, é o último artigo, depois até das cartas de opinião dos/as leitores/as. Quanto a mim, e não percebo nada de marketing de imprensa, parece-me uma escolha pouco inteligente. E, mais uma vez, confirmou-se: numa revista de 130 páginas, o artigo que faz a capa estende-se da página 122 à página 129 (fica apenas a uma página do fim, sendo esta última página dedicada a notícias fictícias em jeito de comic relief).
Já um bocadinho farta de folhear a revista, e pensar que se tinham enganado e esquecido de incluir no corpo da revista o artigo que faz a capa, cheguei finalmente ao que me tinha levado a comprar a revista. E, novamente, em título, se perguntava: "O que resta do feminismo. Nos anos 60 queimaram os sutiãs. Agora usam wonderbra. A vida das mulheres mudou; mas será que mudou assim tanto?", e novamente surge a imagem da "executiva", desta vez falando ao telemóvel, de pé, e o bebé surge dentro da pasta que ela transporta agora a tiracolo. Confesso que achei curiosa a escolha da manequim para esta sessão fotográfica: está com um ar tão infeliz, e um olhar tão fixo, uma sugestão de olheiras debaixo dos olhos sem expressão, será que passou a noite acordada por causa das cólicas do bebé?...
O artigo começa com um excerto de uma entrevista à Dra. Maria Filomena Mónica, que afirma: "É possível a uma mulher dizer 'não limpo o pó, não aspiro, não vou ao supermercado, não faço nada'. Mas é muito difícil a uma mãe dizer 'eu não dou biberão ao meu filho, dás tu'. Eu acho que o último reduto da luta das mulheres estabelece-se no tratamento dos filhos". Ao ler isto, penso que gostaria de chegar à idade da Dra. Maria Filomena Mónica e ter tanta certeza daquilo que digo e penso, porque ela tem, ou aparenta ter, a certeza de que as mulheres não sabem não amar os filhos. Será isto verdade? Será que todas as mulheres do mundo amam incondicionalmente os filhos, nunca os rejeitam, nunca desejam não os ter tido, nunca os negligenciam? E os homens? Aparentemente, diz a Dra. Maria Filomena Mónica, aos homens, pais, é possível, eu diria mesmo, à luz do que se afirma, natural dizer "não cuido do meu filho". Será isto verdade? Será esta a complementaridade dos papéis do homem e da mulher enquanto pai e mãe? A mãe cuida e o pai descuida, e a isso são obrigados/as, por alguma espécie de natureza inerente ao género?
Depois deste excerto, a Sra. Jornalista Paula Maria Simões começa o seu contributo enquanto autora deste artigo, afirmando: "Desde o tempo em que começaram as reivindicações das mulheres por direitos iguais aos homens, na década de 60, a situação melhorou em grande parte dos casos (...)". Foi aqui que eu finalmente percebi do que trata este artigo. Não se trata de descobrir "o que resta do feminismo", mas sim de dizer "o que resta do que eu sei sobre o feminismo", e percebe-se que a Sra. Jornalista Paula Maria Simões, ocupada que esteve em transcrever entrevistas (tem excertos de quatro entrevistas num artigo de treze parágrafos), se esqueceu de procurar informações sobre o tema que fossem um pouco para além daquilo que ela julgava saber sobre o movimento feminista. Qualquer visita menos atenta ao um pólo de agregação de informação tão democrático como a Wikipédia ter-lhe-ia permitido descobrir que, antes dos sutiãs queimados de que ela tanto gosta de falar (duas referências, e ainda antes de se entrar no corpo do artigo), por exemplo, se celebra o dia 8 de Março como Dia Internacional da Mulher (dia comemorativo para a celebração dos feitos económicos, políticos e sociais alcançados pela mulher) em memória do incêndio na fábrica da Triangle Shirtwaist (Nova Iorque, 1911) em que 140 mulheres perderam a vida. Ou que, por exemplo, o movimento pelo sufrágio feminino (que é como quem diz, pelo direito das mulheres a votarem) teve início em 1897, com a fundação da União Nacional pelo Sufrágio Feminino por Millicent Fawcett (1847-1929), uma educadora britânica. O movimento feminino ganhou, então, as ruas e as suas activistas passaram então a ser conhecidas pela sociedade em geral pelo (à época, ofensivo) epíteto de sufragistas, sobretudo aquelas vinculadas à União Social e Política das Mulheres (Women's Social and Political Union - WSPU) movimento que pretendeu revelar o sexismo institucional na sociedade britânica, fundado por Emmeline Pankhurst (1858-1928). Após ser presa repetidas vezes com base na lei "Cat and Mouse", por infrações triviais, inspirou membros do grupo a fazer greves de fome. Ao serem alimentadas à força e ficarem doentes, chamaram a atenção para a brutalidade do sistema legal na época e também divulgaram sua causa. Ela foi uma militante que imprimiu um estilo mais enérgico ao movimento, o qual culminou com situações de confronto entre sufragistas e policiais e, finalmente, com a morte de uma manifestante, Emily Wilding Davison (1872-1913), que se atirou à frente do cavalo do rei da Inglaterra no célebre Derby de 1913, tornando-se a primeira mártir do movimento. E embora o sufrágio universal seja já uma realidade maioritária em quase todo o mundo, em países como o Kuwait, por exemplo, há ainda movimentos que reproduzem as mesmas lutas das sufragistas do século XIX, na tentativa de forçar o governo daquele país a mudar a sua legislação eleitoral e adoptar o voto universal em pleno século XXI. Pois é. Parece que ainda há países em que as mulheres não têm direito a votar. E parece que muitas mulheres morreram, não há muitas décadas atrás, na defesa de direitos aparentemente tão fundamentais como o direito ao trabalho e o direito ao voto. E parece, em suma, que antes dos sutiãs na década de 60, já se fazia qualquer coisinha pelos direitos das mulheres. E quanto a essa história dos sutiãs queimados, diz-se que é um mito, como tantos outros, criado por homens para ridicularizar as lutas das mulheres pelos seus direitos, mas disso eu suponho que a Sra. Jornalista Paula Maria Simões nunca tenha ouvido falar. Já a Dra. Maria Filomena Mónica afirma "Acho que os movimentos de mulheres contribuíram para a emancipação. A única coisa que eu critico é que às vezes exageraram. Era ridículo queimarem sutiãs na praça pública. (...) Elas podiam vingar-se: durante um século, os homens deviam fazer de mulheres para ver o que custava a vida". Estou a citar, juro, não estou a inventar. Esta senhora diz que os movimentos feministas eram, por vezes, exagerados e ridículos, e que uma via muito mais plausível de luta feminista seria a de obrigar os homens a "fazerem de" (seja lá o que for que isto signifique) mulheres durante um século.
Mais à frente no artigo, apresenta-se um excerto de uma entrevista à Sra. "Ana Helena, de 40 anos, tem três filhas", que, diz-se: "Nunca sentiu discriminação no mercado do trabalho. 'Mas sabemos que isso existe, não é? É muito difícil conciliar vida familiar com o trabalho por questões de tempo.' (...) Mas para ela existe sempre uma jornada de trabalho dupla. 'Vou buscar o meu marido à estação (...). E tenho até às nove e meia para gerir tudo. Dar atenção às miúdas, arrumar a casa, preparar o dia seguinte, pô-las na cama. É um desgaste enorme'." Mais à frente, numa secção do artigo intitulada "Raparigas Alpha", Raquel, que "acabou de entrar no curso de Farmácia (...) com uma média final de secundário de 17,7 (...) admite que é obcecada por cinema e que sai imenso com as amigas, estando a anos-luz de ser 'ratinho de biblioteca'", afirma: "Não é para me gabar, mas no geral os rapazes com quem estudei eram piores alunos do que eu (...). Acho que as raparigas são mais maduras e dedicadas ao futuro. Em geral trabalhamos mais para atingir os nossos objectivos". Embora estas duas entrevistas possam, à primeira vista, ter pouco a ver uma com a outra, parece-me importante perceber que a noção que estas mulheres têm da "discriminação" é, digamos, curiosa: discriminação, para elas, parece ser ter alguém a barrar-lhes fisicamente a entrada da escola ou do local de trabalho dizendo-lhes, abertamente, "Não entras porque és mulher". Ou, caso tenham possibilidade de entrar, serem obrigadas a andar a lavar sanitas ou chãos, enquanto que homens com as mesmas habilitações podem desenvolver trabalho a sério, ou então serem obrigadas a estudar ao frio e à chuva, a escrever em quadros de ardósia, sem livros, sem material. Isto sim, deve ser discriminação. Porque trabalhar, em média, mais duas horas por dia (nomeadamente no desempenho de tarefas domésticas), para além da jornada de trabalho, que os homens, não deve ser discriminação. Porque, quando somos pequenas, oferecerem-nos bonecas e louça de brincar, enquanto que aos rapazes oferecem bolas e jogos, não deve ser discriminação. Os rapazes brincam a ser astronautas, cowboys, super-heróis, soldados. As meninas brincam a ser mães e donas de casa, com alguma imaginação professoras ou princesas à espera do príncipe ecantado. E isto não é discriminação, é a nossa essência enquanto mulheres, aparentemente. "Em geral trabalhamos mais para atingir os nossos objectivos", mas isto não é discriminação. As mulheres têm de ser sempre melhores que os homens para serem colocadas ao mesmo nível, mas isto não é discriminação. Desde que partilhem os brinquedos, mesmo que os brinquedos continuem a ser deles, não estamos a ser discriminadas, ou pelo menos assim se pode depreender do que se diz neste artigo.
O artigo termina com esta afirmação da parte da Sra. Jornalista Paula Maria Simões: "Apesar dos pesares, de ainda ganharem menos do que os homens, de terem de se submeter ao aborto ilegal, e da desequilibrada divisão de tarefas, da agenda das mulheres actuais passaram a constar já outras questões". Assim mesmo. Aparentemente, as questões da desigualdade salarial, do direito ao aborto livre e da partilha de tarefas domésticas são já questões, se não ultrapassadas, em vias de se ultrapassarem, porque, de facto, as "mulheres actuais" já não têm de se preocupar com tais questões menores. São "pesares", como diz a Sra. Jornalista Paula Maria Simões, mas a vida não acaba aí. Acho curioso como é que uma revista que se diz "semanário de grande informação" trata deste tipo de problemáticas com a mesma leveza, ou com a mesma importância que atribui à relevância da relação entre a Jornalista Fernanda Câncio e o Primeiro-Ministro José Sócrates para a agenda política do Governo. Isso leva-nos a pensar: será que se o Primeiro-Ministro namorasse com a Dra. Maria Filomena Mónica, seria aprovada uma lei que obrigasse os homens a "fazerem de" mulheres durante um século?

1 comentário:

300Miles disse...

Sei q o post é antigo mx adorei!