sexta-feira, 8 de junho de 2007

Ossos

Algumas pessoas têm muito pudor em reconhecer quanto a biologia condiciona de facto aquilo que somos enquanto seres humanos. As pessoas que se escandalizam quando ouvem dizer "raça" em vez de "etnia" são aquelas para quem o facto sermos todos/as, no fundo, seres eminentemente biológicos é uma realidade demasiado desconfortável. "Não queremos ter raças, porque não somos animais, somos pessoas".
Já eu, vivo bem com o meu lado animal. Desde que me lembro de existir que sempre tive uma relação interessante com o meu corpo. Cedo desenvolvi uma espécie de "sentimento de mim", uma consciência da minha existência e circunstância física, talvez devido a ter praticado ballet e outros desportos durante vários anos. O meu corpo nunca foi, para mim, uma restrição, mas antes uma plataforma.
Confundem-me as pessoas que têm, com os seus corpos, uma relação demasiado "higiénica", como se o corpo pudesse ser apenas uma embalagem a que somos obrigados/as a recorrer para transportar os nossos elevados e iluminados, quase etéreos, seres. Não me vejo assim. Vivo bem com o meu corpo. O que não significa que passe horas a admirar-me ao espelho e a pensar que sou uma dádiva de Deus ao mundo; simplesmente convivo cordialmente com as suas imperfeições e celebro as suas potencialidades. O meu corpo, mais do que a minha mente, é o meu veículo de transmissão. Sou mais sincera quando me expresso através dele, e ele permite-me uma abstracção que não me é possível de outra forma menos "material".
Quando me custa a adormecer, gosto me concentrar nos meus ritmos. Na minha respiração, nos meus batimentos cardíacos. Isso ajuda-me a abstrair-me das preocupações que me roubam o sono. Por outro lado, gosto de analisar o meu corpo, olhá-lo como se estivesse a apreciar um quadro, reparar nas imperfeições da pele, nas veias azuis perceptíveis aqui e ali, nas pulsações. E isso relaxa-me, também.
No entanto, compreendo a relação que algumas pessoas têm com a corporeidade, porque a Educação que recebemos não condiciona apenas as nossas funções intelectuais: a Escola ensina-nos que o saber exige disciplina, a todos os níveis, e só podemos realmente aprender quando controlamos o corpo, quando o obrigamos a estar sentado várias horas e lhe "dizemos" que só pode extravasar às horas destinadas ao efeito. Da mesma forma, tanto a Escola como a família e a própria cultura nos dizem, mais ou menos explicitamente, que o corpo é uma parte de nós de que devemos ter vergonha (porque desempenha funções menos nobres, ou "sujas", se quisermos), e por isso temos que vesti-lo e calçá-lo, e escondê-lo de todas as formas possíveis, e em todas as circunstâncias, principalmente quando temos que o partilhar com alguém. Por isso entendo que tantas pessoas tenham uma relação tão dolorosa com o seu corpo. E lhes custe tanto pensar em si como animais, porque isso seria quase como dizer que não podemos ter controlo sobre nós próprios/as; e, consequentemente, sobre os/as outros/as. Não seria este mundo muito mais fácil se soubéssemos sempre o que esperar do/a outro/a e de nós mesmos/as?...

Gosto de ser principalmente vida. Músculos, sangue, ossos, esforço, adrenalina, cansaço. Vivo bem com o que o meu corpo me possibilita, e gosto de ser principalmente movimento e transformação. Talvez por isto, por esta consciência de existir no plano físico, eu seja tão ciosa do meu espaço. Não gosto quando as pessoas me tocam sem querer, como por exemplo nos transportes públicos ou em algum recinto cheio de gente. As pessoas por vezes circulam nos espaços como se fossem insensíveis ao toque, como se, efectivamente, os seus corpos fossem veículos de transporte, hermeticamente limpos e disciplinados, e nenhuma sensação não programada fosse registada. Não gosto da invasão do contacto indesejado. O toque só me dá prazer quando é mutuamente consentido, quando ambos os corpos se predispõem à comunhão de sensações. Fora isso, é como se fosse uma agressão. Nesse sentido, penso algumas vezes como seria ter de partilhar este espaço que é o meu corpo com outro ser, e qual seria a sensação física dessa "ocupação". Tenho curiosidade; pode ser que daqui a alguns anos possa experimentar...

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